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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Ratzinger ainda é Papa: o alcance da renúncia de Bento XVI

(Texto publicado no jornal italiano Corriere della Sera em 28/05/2014.)

Por Vittorio Messori

“Caríssimos irmãos, convoquei-vos hoje para vos comunicar uma decisão de grande importância para a vida da Igreja. Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro,…”



Totalmente imprevistas, proferidas em latim, em voz baixa, aquelas palavras foram como que uma chicotada que em poucos minutos giraram o mundo. E até mesmo em países de maioria não-católica e até não-cristã, mas capazes de compreender a novidade histórica do acontecimento. Não podemos nos esquecer que — para ficar só com as palavras recentes do protestante Obama, do ortodoxo Putin, do anglicano Cameron — o Romano Pontífice hoje seria a mais alta autoridade moral do planeta.

Perplexidade. Ainda hoje há quem celebre e há quem lamente a decisão de Bento XVI. Ambos parecem desconhecer o real significado do seu gesto. Na foto, papa Bento XVI torna pública sua decisão.
Voltando àquele 11 de fevereiro, festa de Nossa Senhora de Lourdes, quem conhece o mundo católico sabe que ainda estamos perplexos e debatendo, muito duramente. Parece haver dois lados: de um lado, o grupo dos guardiões da tradição, para os quais a “renúncia” (não demissão, uma vez que o papa não teria a quem apresentá-la aqui na terra), embora esteja prevista no Código de Direito Canônico, constituiria uma espécie de deserção, quase como se Bento XVI considerasse o seu ofício como o de um presidente de multinacional ou de um Estado, para quem seria natural aposentar-se com o avanço da idade, em prol da eficiência. A mesma eficiência rejeitada, no entanto, por João Paulo II, que escolheu uma longa agonia pública. Do outro lado, o grupo dos que se alegraram: a renúncia seria o fim da sacralidade do pontífice, a aura mística em torno de sua pessoa e, portanto, o ajuste do bispo de Roma ao padrão comum de todos os bispos, requerido por Paulo VI: renunciar ao governo de uma diocese e a atribuições oficiais na Cúria Romana quando alcançasse 75 anos.
Contudo, restavam ainda questões que pareciam não ter resposta adequada: por que não optar por ser chamado de “bispo emérito de Roma”, como sugerido pela revista Civiltà Cattolica, mas de “papa emérito”? Em que pese ter retirado a capa e o annulus piscatorius (anel do pescador) de seu dedo, um sinal da autoridade do governo, por que não renunciar ao hábito branco? Por que não se aposentar no silêncio da clausura de um mosteiro, ao invés de se confinar dentro dos limites da Cidade do Vaticano, ao lado de São Pedro, cruzando muitas vezes — embora em privado — com o sucessor, recebendo convidados e participando de cerimônias, como a recente canonização de Roncalli e Wojtyla? Confesso que me fazia perguntas semelhantes e ficava perplexo.
Respostas a essas perguntas vêm agora de um estudo realizado por Stefano Violi, professor de Direito Canônico nas Faculdades de Teologia de Bolonha e Lugano. Vale a pena examinar essas páginas densas, porque com a decisão de Bento XVI abriram-se para a Igreja inéditos cenários, um tanto desconcertantes. É provável que as conclusões do professor suscitem debates entre os colegas, pois o canonista Violi teoriza que o ato de Ratzinger inova profundamente e que os papas viventes agora são realmente dois, mesmo que um deles, voluntariamente, “pela metade”, para dizê-lo de um modo simplista, mas correto. Para entender seu ponto de vista, precisamos, antes de mais nada, apagar todos os delírios de conspiração e complô, levando a sério o que Bento XVI falou sobre o peso crescente da velhice como a razão primeira e única da sua decisão: “Nos últimos meses, eu senti que as minhas forças tinham diminuído… Os meus recursos, físicos e intelectuais, pela idade avançada, já não são adequados para exercer adequadamente o ministério …”
Mas, estudando em profundidade o latim muito preciso com o qual Joseph Ratzinger acompanhou sua decisão, o olho do canonista descobriu que ela vai muito além dos poucos antecedentes históricos e além das exigências estabelecidas para a “renúncia” do Código atual da Igreja. Se descobre, isso sim, que Bento XVI não tinha a intenção de renunciar ao munus petrinus, nem ao cargo, nem ao seu ofício, isto é, ao que o próprio Cristo atribuiu ao chefe dos Apóstolos e tem sido transmitido aos seus sucessores. O papa renunciou apenas ao ministerium, ou seja, ao exercício da administração prática desse ofício. Na fórmula utilizada por Bento, antes de tudo se distingue o munus — o ofício papal, da executio — que é o próprio exercício do cargo. Mas a executio é dupla: há o aspecto de governo que se exerce agendo et loquendo, trabalhando e ensinando. E há também o aspecto espiritual, não menos importante, que é exercido orando et patiendo, rezando e sofrendo. É o que estaria por trás das palavras de Bento XVI: “Não retorno à vida privada… Eu não tenho mais o poder de liderança na Igreja, mas para o bem desta mesma Igreja e no serviço da oração, continuo no recinto de São Pedro.” Onde “recinto” não deve ser entendido apenas no sentido de um lugar geográfico para viver, mas também um “lugar” teológico.

Uma Igreja, dois papas. Papa Francisco visita Bento XVI.
Eis, então, o porquê da escolha, inesperada e inédita, de se fazer chamar “papa emérito”. Um bispo continua bispo quando a idade ou a doença lhe impõe deixar o governo de sua diocese, e ele se retira para orar por ela. Tanto mais o bispo de Roma, para o qual o munus, o cargo, o ofício de Pedro, foi-lhe conferido de uma vez por todas, para toda a eternidade, por meio do Espírito Santo, servindo-se dos cardeais no conclave só como instrumentos. Aqui também o porquê da decisão de não abandonar o hábito branco, mesmo ficando privado dos sinais particulares do governo ativo. E por isso a vontade de estar ao lado das relíquias do chefe dos apóstolos, venerado na grande basílica. Nas palavras do professor Violi: “Bento XVI foi despojado de todo o poder de governo e comando inerente a seu cargo, sem contudo abandonar o serviço à Igreja: este continua, por meio do exercício na dimensão espiritual do ‘munus’ pontifício que lhe foi confiado. Com isso, ele não tinha a intenção de renunciar. Ele não renunciou ao ofício, que não é revogável, mas à sua execução.”
Será que é por isso que Francisco parece não gostar de se definir como “papa”, consciente de que deve compartilhar o munus pontifício, pelo menos na dimensão espiritual, com Bento? Ele que, no entanto, herdou plenamente de Bento XVI o cargo de bispo de Roma. Será que é por isso que esta é para ele, como se sabe, sua auto-definição preferida, desde as primeiras palavras de saudação ao povo depois da eleição? Tanto é assim que muitos, surpresos, se perguntaram por que ele não usou a palavra “papa” ou “pontífice” em uma ocasião tão solene, diante das TVs do mundo inteiro, mas apenas falou sobre seu papel como o sucessor do episcopado romano.
Pela primeira vez, então, a Igreja de fato tem dois papas, um reinando e outro emérito? Parece que esta era a vontade do próprio Joseph Ratzinger com a renúncia somente do serviço ativo, que se mostrou “um ato solene de seu Magistério”, nas palavras do canonista. Se de fato é assim, tanto melhor para a Igreja: é um dom que haja, lado a lado, também fisicamente, quem dirija e ensine, e quem reze e sofra… por todos, mas acima de tudo para apoiar o irmão no ofício pontifício quotidiano.