Hugo de S. Vitor
OPÚSCULO SOBRE O MODO DE
APRENDER E DE MEDITAR
A humildade é necessária ao que deseja
aprender.
A humildade é o princípio do
aprendizado, e sobre ela, muita coisa tendo sido escrita, as três seguintes, de
modo principal, dizem respeito ao estudante.
A primeira é que não tenha
como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura.
A segunda é que não se
envergonhe de aprender de ninguém.
A terceira é que, quando
tiver alcançado a ciência, não despreze aos demais.
Muitos se enganaram por
quererem parecer sábios antes do tempo, pois com isto envergonharam-se de
aprender dos demais o que ignoravam. Tu, porém meu filho, aprende de todos de
boa vontade aquilo que desconheces. Serás mais sábio do que todos, se quiseres
aprender de todos. Nenhuma ciência, portanto, tenhas como vil, porque toda
ciência é boa. Nenhuma Escritura, ou pelo menos, nenhuma Lei desprezes, se
estiver à disposição. Se nada lucrares, também nada terás perdido. Diz, de
fato, o Apóstolo: "Omnia legentes, quae bona sunt tenentes" (I Tess 5,
21).
O bom estudante deve ser
humilde e manso, inteiramente alheio aos cuidados do mundo e às tentações dos
prazeres, e solícito em aprender de boa vontade de todos. Nunca presuma de sua
ciência; não queira parecer douto, mas
sê-lo; busque os ditos dos sábios, e procure ardentemente ter sempre os seus
vultos diante dos olhos da mente, como um espelho.
Três coisas necessárias ao estudante.
Três coisas são necessárias
ao estudante: a natureza, o exercício e a disciplina.
Na natureza, que facilmente
perceba o que foi ouvido e firmemente retenha o percebido.
No exercício, que cultive o
senso natural pelo trabalho e diligência.
Na disciplina, que vivendo
louvavelmente, componha os costumes com a ciência.
Prime pelo engenho e pela memória.
Os que se dedicam ao estudo
devem primar simultâneamente pelo engenho e pela memória, ambos os quais em
todo estudo estão de tal modo unidos entre si que, faltando um, o outro não
poderá conduzir ninguém à perfeição, assim como de nada aproveitam os lucros
onde faltam os vigilantes, e em vão se fortificam os tesouros quando não se tem
o que neles guardar.
O engenho é um certo vigor
naturalmente existente na alma, importante em si mesmo.
A memória é a firmíssima
percepção das coisas, das palavras, das sentenças e dos significados por parte
da alma ou da mente.
O que o engenho encontra, a
memória custodia.
O engenho provém da
natureza, é auxiliado pelo uso, é embotado pelo trabalho imoderado e aguçado
pelo exercício moderado.
A memória é principalmente
ajudada e fortificada pelo exercício de reter e de meditar assiduamente.
A leitura e a meditação.
Duas coisas há que exercitam
o engenho: a leitura e a meditação.
Na leitura, mediante regras
e preceitos, somos instruídos pelas coisas que estão escritas. A leitura é
também uma investigação do sentido por uma alma disciplinada.
Há três gêneros de leitura:
a do docente, a do discípulo e a do que examina por si mesmo. Dizemos, de fato:
"Leio
o livro para o discípulo", "leio o livro pelo mestre",
ou simplesmente "leio o livro".
A meditação.
A meditação é uma cogitação
frequente com conselho, que investiga prudentemente a causa e a origem, o modo
e a utilidade de cada coisa.
A meditação toma o seu
princípio da leitura, todavia não se realiza por nenhuma das regras ou dos
preceitos da leitura. Na meditação, de fato, nos deleitamos discorrendo como
que por um espaço aberto, no qual dirigimos a vista para a verdade a ser
contemplada, admirando ora esta, ora aquelas causas das coisas, ora também
penetrando no que nelas há de profundo, nada deixando de duvidoso ou de
obscuro.
O princípio da doutrina,
portanto, está na leitura; a sua
consumação, na meditação.
Quem aprender a amá-la com
familiaridade e a ela se dedicar frequentemente tornará a vida imensamente
agradável e terá na tribulação a maior das consolações. A meditação é o que mais do que todas as
coisas segrega a alma do estrépito dos atos terrenos; pela doçura de sua
tranquilidade já nesta vida nos oferece de algum modo um gosto antecipado da
eterna; fazendo-nos buscar e inteligir, pelas coisas que foram feitas, àquele
que as fez, ensina a alma pela ciência e a aprofunda na alegria, fazendo com
que nela encontre o maior dos deleites.
Três gêneros de meditação.
Três são os gêneros de
meditação. O primeiro consiste no exame dos costumes, o segundo na indagação
dos mandamentos, o terceiro na investigação das obras divinas.
Nos costumes a meditação
examina os vícios e as virtudes. Nos mandamentos divinos, os que preceituam, os
que prometem, os que ameaçam.
Nas obras de Deus, as em que
Ele cria pela potência, as em que modera pela sabedoria, as em que coopera pela
graça, as quais todas tanto mais alguém conhecerá o quanto sejam dignas de
admiração quanto mais atentamente tiver se habituado em meditar as maravilhas
de Deus.
Do confiar à memória aquilo que aprendemos.
A memória custodia,
recolhendo-as, as coisas que o engenho investiga e encontra.
Importa que as coisas que
dividimos ao aprender as recolhamos confiando-as à memória: recolher é reduzir
a uma certa breve e suscinta suma as coisas das quais mais extensamente se
escreveu ou se disputou, o que foi chamado pelos antigos de epílogo, isto é,
uma breve recapitulação do que foi dito.
A memória do homem se
regozija na brevidade, e se se divide em muitas coisas, torna-se menor em cada
uma delas.
Devemos, portanto, em todo
estudo ou doutrina recolher algo certo e breve, que guardemos na arca da
memória, de onde posteriormente, sendo necessário, as possamos retirar. Será
também necessário revolvê-las frequentemente chamando-as, para que não envelheçam
pela longa interrupção, do ventre da memória ao paladar.
As três visões da alma racional. Diferença
entre
meditação e contemplação.
Três são as visões da alma
racional: o pensamento, a meditação e a contemplação.
O pensamento ocorre quando a
mente é tocada transitoriamente pela noção das coisas, quando a própria coisa
se apresenta subitamente à alma pela sua imagem, seja entrando pelo sentido,
seja surgindo da memória.
A meditação é um assíduo e
sagaz reconduzir do pensamento em que nos esforçamos por explicar algo obscuro
ou procuramos penetrar no que é oculto.
A contemplação é uma visão
livre e perspicaz da alma de coisas amplamente esparsas.
Entre a meditação e a
contemplação o que parece ser relevante é que a meditação é sempre das coisas
ocultas à nossa inteligência; a contemplação, porém é de coisas que segundo a
sua natureza ou segundo a nossa capacidade são manifestas; e que a meditação sempre se ocupa em buscar
alguma coisa única, enquanto que a contemplação se estende à compreensão de
muitas ou também de todas as coisas.
A meditação é, portanto, um
certo vagar curioso da mente, um investigar sagaz do obscuro, um desatar do que
é intrincado. A contemplação é aquela vivacidade da inteligência que, possuindo
todas as coisas, as abarca em uma visão plenamente manifesta, e isto de tal
maneira que aquilo que a meditação busca, a contemplação possui.
Dois gêneros de contemplação.
Há, porém, dois gêneros de
contemplação. Um deles, que é o primeiro e que pertence aos principiantes,
consiste na consideração das criaturas.
O outro, que é o último e que pertence aos perfeitos, consiste na
contemplação do Criador.
No livro dos Provérbios,
Salomão principiou como que meditando; no Eclesiastes elevou-se ao primeiro
grau da contemplação; finalmente, no Cântico dos Cânticos transportou-se ao
supremo.
Para que, portanto, possamos
distinguir estas três coisas pelos seus próprios nomes, diremos que a primeira
é meditação; a segunda, especulação; a terceira, contemplação.
Na meditação a perturbação
das paixões carnais, surgindo importunamente, obscurece a mente inflamada por
uma piedosa devoção; na especulação a novidade da insólita visão a levanta à
admiração; na contemplação o gosto de uma extraordinária doçura a transforma
toda em alegria e contentamento.
Portanto, na meditação temos
solicitude; na especulação, admiração; na contemplação, doçura.
Três partes da exposição.
A exposição contém três
partes: a letra, o sentido e a sentença. A letra é a correta ordenação das
palavras, a qual também chamamos de construção. O sentido é um delineamento
simples e adequado que a letra tem diante de si como um primeiro semblante. A sentença
é uma mais profunda inteligência, a qual não pode ser encontrada senão pela
exposição ou interpretação. Para que uma exposição se torne perfeita
requerem-se, nesta ordem, primeiro a letra, depois o sentido e posteriormente a
sentença.
Os três gêneros de vaidades.
Três são os gêneros de
vaidades. O primeiro é a vaidade da mutabilidade, que está em todas as coisas
caducas por sua condição. O segundo é a vaidade da curiosidade ou da cobiça,
que está na mente dos homens pelo amor desordenado das coisas transitórias e
vãs. O terceiro é a vaidade da mortalidade, que está nos corpos humanos pela
penalidade.
As obrigações da eloquência.
Disse Agostinho, famoso por
sua eloqüência, e o disse com verdade, que o homem eloqüente deve aprender a
falar de tal modo que ensine, que deleite e que submeta. A isto acrescentou que
o ensinar pertence à necessidade, o deleitar à suavidade e o submeter à
vitória.
Destas três coisas, a que
foi colocada em primeiro lugar, isto é, a necessidade de ensinar, é constituída
pelas coisas que dizemos, as outras duas pelo modo como as dizemos.
Quem, portanto, se esforça
no falar em persuadir o que é bom, não despreze nenhuma destas coisas: ensine,
deleite e submeta, orando e agindo para que seja ouvido inteligentemente, de
boa vontade e obedientemente. Se assim o fizer, ainda que o assentimento do
ouvinte não o siga, se o fizer apropriada e convenientemente, não sem mérito
poderá ser dito eloqüente.
O mesmo Agostinho parece ter
querido que ao ensino, ao deleite e à submissão também pertençam outras três
coisas, ao dizer, de modo semelhante:
"Será eloqüente aquele que puder dizer
o
pequeno com humildade,
o
moderado com moderação,
o grande com elevação".
Quem deseja conhecer e
ensinar aprenda, portanto, quanto há para se ensinar e adquira a faculdade de
dizê-las como convém a um homem de Igreja. Quem, na verdade, querendo ensinar,
às vezes não é entendido, não julgue ainda ter dito o que deseja àquele a quem
quer ensinar, porque, mesmo que tenha dito o que ele próprio entendeu, ainda
não foi considerado como tendo-o dito àquele por quem não foi entendido. Se,
porém, foi entendido, de qualquer modo que o tenha dito, o disse.
Deve, portanto, o doutor das
divinas Escrituras ser defensor da reta fé, debelador do erro, e ensinar o bem;
e neste trabalho de pregação conciliar os adversos, levantar os indolentes,
declarar aos ignorantes o que devem agir e o que devem esperar. Onde tiver
encontrado, ou ele próprio os tiver feito, homens benévolos, atentos e dóceis,
há de completar o restante conforme a causa o exija. Se os que ouvem devem ser
ensinados, seja-o feito por meio de narração; se, todavia, necessitar que
aquilo de que trata seja claramente conhecido, para que as coisas que são
duvidosas se tornem certas, raciocine através dos documentos utilizados.
Hugo de São Vitor
(1096-1141)
Texto disponível para Download no site de
Introdução ao Cristianismo segundo a obra de
Santo
Tomás de Aquino e Hugo de S. Vitor