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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Síntese de D. Estevão Bettencourt, osb, à Fé e Razão , Encíclica de João Paulo II

  Em síntese:  O Papa João Paulo II publicou a sua última Encíclica aos 15/10 pp., dedicando-o ao binômio "Fé e Razão".  Quer atender à situação de angústia e desespero de muitos cidadãos contemporâneos, que buscam, sem o encontrar, o sentido da vida ou a sua identidade:  "Quem sou eu?  Donde venho?  Para onde vou?".  Está claro que somente Deus, pela revelação de seu plano de amor feita mediante Jesus Cristo, pode responder plenamente a tal anseio.  Todavia a fé tem suas bases razão humana, que não é, como dizem pensadores modernos, incapaz de reconhecer a Verdade objetiva; a razão aponta as credenciais para a fé, a fim de que esta não degenere em fantasia ou superstição.  É  preciso, pois, restaurar a confiança no intelecto, que foi para apreender a dos escolhos do historicismo, do ecleticismo, do cientificismo, do niilismo ...  Razão e Fé se complementam mutuamente, de modo que se há de dizer racionalismo (que só aceita o que a razão pode demonstrar).  A Filosofia, que aponta na Metafísica a Causa Primeira e o Fim Último, há de ser, em nossos dias, o terreno comum em que se realize o diálogo entre cristãos e ateus.
Aos 14/09/1998 o Santo Padre João Paulo II assinou a sua última Carta Encíclica, que começa pelas palavras Fides et Ratio (Fé e Razão).  É, de certo modo, a continuação da Encíclica Veritatis Splendor (O Esplendor da Verdade), que em 1993 abordava a verdade perene como referencial da Ética.  A nova Encíclica vai ao fundo da questão, considerando as possibilidades de chegar o homem a atingir a Verdade.
Nas páginas subseqüentes apresentaremos uma síntese desse importante documento.
Introdução: "Conhece-te a ti mesmo" (nº 1-6)
A partir do cap. 2 da sua Encíclica, o Papa quer mostrar que a própria revelação divina incita o homem a procurar a verdade mediante o exercício da inteligência ou da razão.  Esta é valorizada como instrumento precioso de acesso à verdade.
A Filosofia até o século XVI sempre atingiu a Primeira Causa e o Último Fim em seu tratado de Metafísica; o acume da razão, devidamente cultivada, leva o homem a perceber o sentido da sua existência, pois lhe aponta uma significação transcendental: os anseios do homem à verdade, à vida, ao amor, à felicidade (...), não são frustrados, pois Deus lhes assegura a autêntica resposta.  Todavia, a partir do século XVI, a Filosofia tem-se voltado para crítica do conhecimento, desacreditando a razão e sua capacidade de chegar à plena verdade: o sensismo, o idealismo e o existencialismo têm solapado a capacidade da razão - o que suscita o vazio e o desdém do viver humano.
Pois bem.  O Papa deseja reafirmar a capacidade, do intelecto humano, de reconhecer a verdade plena.  Se o homem possui uma demanda congênita de luz para a sua mente, não pode deixar de ter em si uma faculdade intelectiva, apta a captar essa luz da Verdade.
Pode-se definir o homem como aquele que procura a Verdade.  É impossível que uma busca, tão profundamente radicada na natureza humana, seja frustrada e vã.  A própria capacidade de procurar a Verdade e fazer perguntas implica já uma primeira resposta.  "O homem não começaria a procurar uma coisa que ignorasse totalmente ou considerasse absolutamente inatingível"  (nº 28s).
A Igreja desde cedo valorizou a pesquisa intelectual.  São Justino (+ 165), Clemente de Alexandria (+ 213), S. Agostinho (+ 430) foram pioneiros desse cultivo da razão posta à procura de respostas fundamentais.  S. Tomás de Aquino (+ 1274) foi um notável expoente dessa tarefa.
Ocorre, porém, que a razão, limitada como é, não descobre toda a Verdade.  Ela reconhece que a Verdade continua mesmo quando seu raio de alcance termina.  Com efeito: o Deus que a Metafísica apreende como o Primeiro Movente Imóvel, é também o Deus que se revela aos homens mediante os Patriarcas, os Profetas e Jesus Cristo.  Assim o homem é levado pela própria razão a conceber a fé; esta se acha na linha mesma do discurso racional e recebe deste as duas credenciais.  Ninguém deve crer sem se dar conta das razões que o levam a crer; a fé não é um ato cego ou sentimental, mas é um ato de inteligência movida pela vontade a aderir à Palavra de Deus.  Aliás, verifica-se que o ato de crer não é estranho a homem algum.  Com efeito; todos vivem numa sociedade que tem sua história passada e suas tradições; quem as pode controlar com precisão?  Todos dependem das notícias que diariamente lhes são transmitidas pelos meios de comunicação social; quem poderia, por conta própria, avaliar o fluxo de tais informações, que geralmente são aceitas como verdadeiras?  Donde se vê que crer não é algo que exorbite o costumeiro da vida humana.  De resto, não há contradição entre razão e fé, mas, ao contrário, convergência em demanda da única e plena Verdade.  "A luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus, argumenta São Tomás; por isto não se podem contradizer entre si"  (nº 43).
"A fé requer que o seu objeto seja compreendido com a ajuda da razão; por sua vez, a razão, no apogeu da sua indagação, admite como necessário aquilo que a fé apresenta" (nº 42).
Por conseguinte, vão rejeitadas duas posições extremas: o fideísmo e o racionalismo.  O fideísmo priva a fé do apoio da razão ou das suas credenciais racionais ...; o racionalismo só aceita o que a razão pode demonstrar.  Ao fideísta dir-se-á:  "Intelige ut credas. Raciocina, para que possas chegar à fé".  E ao racionalista: "Crede ut intelligas.  Acredita para que possas compreender".
"52.  Não foi só recentemente que o Magistério da Igreja interveio para manifestar o seu pensamento a respeito de determinadas doutrinas filosóficas.  A título de exemplo, basta recordar, no decurso dos séculos, as tomadas de posição acerca das teorias que defendiam a preexistência das almas, e ainda sobre as diversas formas de idolatria e esoterismo supersticioso, contidas em teses astrológicas; sem esquecer os textos mais sistemáticos contra algumas teses do averroísmo latino, incompatíveis com a fé cristã.
Se a palavra do Magistério se fez ouvir mais freqüentemente a partir da segunda metade do século passado, foi porque, naquele período, numerosos católicos sentiam o dever de contrapor uma filosofia própria às várias correntes do pensamento moderno.  Daqui resultou, para o Magistério da Igreja, a obrigação de vigiar a fim de que tais filosofias não degenerassem, por sua vez, em formas errôneas e negativas.  Acabaram assim censurados os dois extremos:  dum lado, o fideísmo e o tradicionalismo radical, pela sua falta de confiança nas capacidades naturais da razão; e, do outro, o racionalismo e o ontologismo, porque atribuíam à razão natural aquilo que apenas se pode conhecer pela luz da fé.  Os conteúdos positivos deste debate foram formalizados na Constituição Dogmática Dei Fillus, por meio da qual um Concílio ecumênico - o Vaticano I - intervinha, pela primeira vez e de forma solene, sobre as relações entre razão e fé.  A doutrina contida neste texto marcou, intensa e positivamente, a investigação filosófica de muitos crentes e constitui ainda hoje um ponto normativo de referência para uma correta e coerente reflexão cristã neste âmbito particular (...).
55.  Se observarmos a situação atual, constataremos que os problemas retornam, mas com peculiaridades novas.  Já não se trata de questões que interessam apenas a indivíduos ou grupos, mas de convicções tão generalizadas no ambiente que se tornam, em certa medida, mentalidade comum.  Tal é, por exemplo, a desconfiança radical da razão, que evidenciam as conclusões mais recentes de muitos estudos filosóficos.  De várias partes ouviu-se falar, a este respeito, de fim da metafísica: querem que a filosofia se contente com tarefas mais modestas, tais cimo a mera interpretação dos fatos ou apenas a investigação sobre determinados campos do saber humano ou das suas estruturas.
Também na teologia, voltam a assomar as tentações de outrora.  Por exemplo, em algumas teologias contemporâneas comparece novamente um certo racionalismo, principalmente quando asserções, consideradas filosoficamente fundadas, são tomadas como normativas para a investigação teológica.  Isto sucede sobretudo quando o teólogo, por falta de competência filosófica, se deixa condicionar de modo acrítico por afirmações que já entraram na linguagem e cultura corrente, mas carecem de suficiente base racional.
Não faltam também perigosas recaídas no fideísmo, que não reconhece a importância do conhecimento racional e do discurso filosófico para a compreensão da fé, melhor, para a própria possibilidade de acreditar em Deus.  Uma expressão, hoje generalizada, desta tendência fideísta é o "biblicismo", que tende a fazer da leitura da Sagrada Escritura, ou da sua exegese, o único referencial da verdade.  Assim, acaba-se por identificar a palavra de Deus só com a Sagrada Escritura, anulando deste modo a doutrina da Igreja que o Concílio Ecumênico Vaticano II expressamente reafirmou.  Com efeito, a Constituição Dei Verbum, depois de recordar que a palavra de Deus está presente tanto nos textos sagrados como na Tradição, afirma sem rodeios: "A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo persevera unido aos seus Pastores na doutrina dos Apóstolos".  Portanto a Sagrada Escritura não constitui, para a Igreja, a sua única referência; a "regra suprema da sua fé - provém efetivamente da unidade que o Espírito estabeleceu entre a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja, numa reprocidade tal que os três não podem subsistir de maneira independente.
Além disso, não se deve subestimar o perigo que existe quando se quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplicação de uma única metodologia, esquecendo a necessidade de uma exegese mais ampla que permita o acesso, em união com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos.  Os que se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer que as diversas metodologias hermenêuticas têm também na sua base uma concepção filosófica: é preciso examiná-las com grande discernimento, antes de as aplicar aos textos sagrados.
Outras formas de fideísmo latente podem-se identificar na pouca consideração que é reservada à teologia especulativa, e ainda no desprezo pela filosofia clássica, de cujas noções provieram os termos para exprimir tanto a compreensão da fé como as próprias formulações dogmáticas.  O Papa Pio XII, de veneranda memória, alertou contra este esquecimento da tradição filosófica e abandono das terminologias tradicionais".
A separação entre razão e fé, levada a cabo nos últimos séculos, empobreceu tanto uma como outra:
"A razão privada do contributo da Revelação percorreu sendas marginais, com o risco de perder de pista a sua meta final.  A fé privada da razão põe em maior evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal.  É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição.  Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé adulta, não é estimada a fixar o olhar sobre a novidade e a radicalidade do ser"  (nº 48).
E continua o Papa:
"À luz disto, creio justificado o meu apelo veemente para que a fé e a filosofia recuperem aquela unidade profunda que as torna capazes de ser coerentes com a sua natureza no respeito da recíproca autonomia.  Ao desassombro (parresía) da fé deve corresponder a audácia da razão" (nº  48).
Na verdade, o encontro entre a razão e a fé é o encontro da criatura com o Criador:  "A razão alcança o Sumo Bem e a Suma Verdade na pessoa do Verbo Encarnado"  (nº 41).
Estas ponderações levam o Santo Padre a corroborar os pronunciamentos de seu predecessores relativos ao valor da Filosofia e à necessidade de a cultivar, especialmente na formação dos candidatos ao sacerdócio; "a filosofia tem um caráter fundamental e indispensável na estrutura dos estudos teológicos" (nº 62).  E conclui:
"Em virtude das razões aduzidas, sinto a urgência de confirmar, por meio desta carta encíclica, o grande interesse que a Igreja tem pela filosofia, ou melhor, a ligação íntima do trabalho teológico com a investigação filosófica da verdade"  (nº 63).
3.  Interação da Teologia com a Filosofia (nº 64-79)
"A palavra de Deus destina-se  a todo homem, de qualquer época e lugar da terra, e o homem, por natureza, é filósofo" (nº 64).  Daí a necessidade de que a Teologia recorra à Filosofia.
A Teologia é intellectus fidel, reflexão sobre as verdades da fé; ela procura explicar tais verdades.  Donde se segue que
- a Teologia Dogmática (também dita "Sistemática") deve articular o sentido do mistério de Deus não só de modo narrativo (descrevendo os fatos da história da salvação), mas também e sobretudo de forma argumentativa ou mediante "expressões conceptuais, formuladas de modo crítico e universalmente acessível... Sem o contributo filosófico não se poderiam ilustrar certos conteúdos teológicos como, por exemplo, as relações pessoais na SS. Trindade, a ação criadora de Deus, a identidade de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem;
- a Teologia Fundamental, que procura expor as razões ou as credenciais da fé (cf. 1Pd 3,15), deve justificar a explicitar a relação entre a fé e a reflexão filosófica.  A fé, dom de Deus, apesar de não se basear na evidência racional, de certo não pode existir sem a razão;
- a Teologia Moral tem especial necessidade de contributo filosófico.  Com efeito, para aplicar os princípios gerais às circunstâncias concretas da vida individual e social, o cristão deve recorrer à sua consciência e ao vigor do seu raciocínio.  Além disto, a Teologia Moral deve lidar com noções claras como as de lei moral, consciência, liberdade de arbítrio, responsabilidade pessoal, culpa (...), cuja definição provém da Ética filosófica.
Não se pode negar ainda a importância que têm para a elaboração teológica a história, as ciências, as culturas asiáticas e africanas ... Tais elementos são subsidiários e não devem fazer esquecer a necessidade de uma reflexão tipicamente filosófica, crítica e aberta ao universal.  Importa saber o que os homens pensam, mas mais ainda importa saber a Verdade; não as diversas opiniões humanas como tais friamente elencadas, mas a Verdade - e tão somente a Verdade - pode servir de ajuda ao estudioso; cf. nº 70.
Quanto às culturas asiáticas e africanas, observa oportunamente o S. Padre: "Quando a Igreja entra em contato com grandes culturas que nunca tinha encontrado antes, não pode pôr de parte o que adquiriu pela inculturação no pensamento greco-latino.  Rejeitar uma tal herança seria contrariar o desígnio providencial de Deus, que conduz a sua Igreja pelos caminhos do tempo e da história" (nº 72).
Muito importante é o que, pouco depois, o Papa escreve a respeito do discutido conceito de Filosofia cristã.  Após referir-se à Filosofia pré-cristã ou independente da revelação evangélica, diz João Paulo II:
"76.  Um segundo estágio da filosofia é aquilo que muitos designam com a expressão Filosofia Cristã.  A denominação, em si mesma, é legítima, mas não deve dar margem a equívocos: com ela, não se pretende aludir a uma filosofia oficial da Igreja, já que a fé, enquanto tal, não é uma filosofia.  Com aquela designação, deseja-se sobretudo indicar um modo cristão de filosofar, uma reflexão filosófica concebida em união vital com a fé.  Por conseguinte, não se refere simplesmente uma filosofia elaborada por filósofos cristãos que, na sua pesquisa, quiseram não contradizer a fé.  Quando se fala de filosofia cristã, pretende-se abraçar todos aqueles importantes avanços do pensamento filosófico que não seriam alcançados sem a contribuição, direta ou indireta, da fé cristã.

Fonte: http://www.cleofas.com.br/
PAX CHRISTI
Diogo Pitta

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