Os acontecimentos que hoje são vividos
pela Igreja, profundamente angustiantes e sinistros, são paradoxalmente
repletos da Beleza e esplendor da Glória Divina. O Amor fez-se Carne e nós o
Crucificamos! Vendemo-lo à preço de escravos; trinta míseras e pífias moedas de
prata.
Engana-se quem crê que todos estes
acontecimentos tenebrosos que vivemos na semana santa, e de modo mais
específico na Sexta da paixão do Senhor, estão trancafiados num passado bimilenar
submersos em toneladas de acontecimentos históricos, como simplórios papeletes
sob um pilha de livros. A Cruz Visita-nos hoje! A Igreja é uma realidade
diacrônica; transcende o tempo e é inabarcável, e embora transcenda o tempo,
ela contém o tempo.
Fico perplexo ao constatar a quantidade
de pessoas que renegam tão doce presente do Altíssimo: a visita da Cruz!
Porém, como encontrar na Cruz uma
consolação? Como associar essa imagem do Homem/Deus coberto sob um manto de
sangue e chagas á um instrumento deveras salutar e eficaz para a santificação
das almas? Como criar uma analogia entre o rosto cuspido, escarnecido e dilacerado
com a Beleza da Glória Divina? A resposta está contida numa expressão, que
atualmente tornou-se descartável e obsoleta, mas que pendurada na Cruz adquire
o seu sentido pleno: esta expressão é o amor! O amor é o pontífice entre a
carne dilacerada que torna a imagem de Jesus na Cruz uma imagem de horror e a
beleza da Glória Divina. O Ato de Jesus de doar-se até a morte no madeiro da
cruz, em obediência à Deus, torna explícita não somente a atitude de extremo amor
conosco, pecadores que somos, mas extremo amor com Deus Pai. Poderíamos dizer
que é uma dupla prova de amor de Jesus permitir-se ser pregado no alto da Cruz
por obediência à Deus e amor aos homens? A obediência não é uma manifestação de
amor?
A obra de amor de Deus deu-se o verbo
encarnou-se e se fez homem, “recapitulou
em si toda a longa série de homens, dando-nos em resumo a salvação, de forma
que o que tínhamos perdido em Adão, isto é, a imagem e semelhança de Deus, o
recuperássemos em Jesus Cristo” (Adversus
heareses III, 18,1) . Lemos na carta de São Paulo aos romanos: “Com efeito,
Cristo morreu e ressuscitou para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rom
14,9)
Mas qual o significado da Cruz de Cristo
para nós atualmente? Como podemos associarmo-nos hoje à Páscoa de Cristo?
O venerável beato João Paulo II, redigiu
uma belíssima carta apostólica intitulada Salvicis
Doloris, o sentido cristão para o sofrimento humano. O Papa João Paulo II
inicia sua reflexão acerca do sofrimento humano com uma expressão de São Paulo:
“Completo na minha carne o que falta ao sofrimentos de Cristo, pelo seu Corpo
que é a Igreja” (Cl 1,24). Este versículo poderia ser corroborado pela fala de
São Paulo na carta aos gálatas; “Estou crucificado com cristo!” – con crucifixus crucis. Eis a forma de
vivermos a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; associando-nos à sua morte;
morrendo com a Majestade no alto do seu Trono – a Cruz –assim poderemos com Ele
ressuscitar em Sua Glória e acertadamente exclamar “corações ao Alto!”
O
Papa Bento XVI escreve sucinta e magnificamente:” não
tem direito de cantar aleluia na ressurreição, quem não sofreu as dores da
paixão!”. Poderíamos nós completarmos com alguns enxertos: não tem direito de
cantar aleluia na ressurreição, quem não foi com Cristo ao Horto das oliveiras
em sua agonia mortal; ou quem não partilhou das humilhações que Cristo sofreu;
ou quem se recusou pôr-se debaixo do peso cortante e ardente dos flagelos que
açoitavam-No sobre a coluna; ou quem não viveu com Jesus o momento humilhante
de sendo inocente ser trocado por um fascínora.”
Quando a Cruz nos visita, é mais honorável e salutar abraça-la como digno
imitador de Cristo, e com ela nos ombros, caminhar para a ressurreição, pois se
dela corrermos, pelo seu peso seremos esmagados.
Quantos de nós não nos tornamos
verdadeiros inimigos da Cruz de Cristo ao primeiro alerta de dor ou sofrimento
em nossas vidas? Lembremo-nos que em toda a Sagrada Escritura apenas os que não
possuíam fé clamavam para que Deus os cumulasse de milagres, tirando-os de seus
suplícios, vamos aos exemplos: Retornando ao livro do Gênesis no capítulo 22,
onde somos brindados com a narração do angustiante sacrifício de Isaac, Abraão,
seu pai, poderia ter clamado á Deus para que o livrasse daquela angústia que
certamente dilacerava seu coração por ter de, por obediência à Deus - obediência
esta que lhe foi incutida pela fé - sacrificar seu único filho. Ao invés disso,
pôs-se a caminho sob o peso daquela Cruz que lhe foi imposta sobre os ombros,
pondo seu nos braços de seu filho Isaac, o madeiro com o qual consumaria o
sacrifício. Os Santos Padres veem nesta passagem a belíssima prefiguração da
morte de Jesus no madeiro, pois assim como Cristo subiu um monte, carregando o
madeiro para o seu sacrifício, Isaac também o fez. Inevitável é também criar
uma analogia entre Abraão e a Virgem santíssima, entre a fé dos dois e entre os
martírios vividos pelos dois de terem de pela Fé, entregar o seu filho ao
sacrifício.
Poderíamos aludir também ao belíssimo
trecho do livro de Daniel, capítulo 3, com o louvor dos 3 jovens da fornalha, cântico
este que é recitado solenemente nas orações das Laudes no Domingo da I semana do saltério. Interessante é quem em
40 versículos- quase 2 páginas – não há nem um pedido sequer para livrá-los do
suplício, isto porque sua fé fez com que um anjo do senhor torna-se a fornalha
fresca como brisa da tarde.
Ainda em Daniel, agora no capítulo 6, encontramos
a narração acerca do arremesso de Daniel á cova dos Leões, pela sua fidelidade
ao Deus Vivo. Daniel passa uma noite inteira em companhia de Leões ferozes que
tiveram suas bocas seladas pelas mãos dos Anjos de Deus, porém não há sequer um
relato de que o mesmo tenha suplicado para que Deus o livrasse da sua “cruz”.
Saltando até os Atos dos Apóstolos, não
verificamos vestígios de homens de fé, clamando por milagres que os livrem das
cadeias, dos exílios, das flagelações, dos lapidamentos, das visitas da Cruz em
suas vidas. O que podemos perceber, é que a cruz é abraçada com louvor nos
lábios de quem a abraça. Apenas vemos este chamamento de milagres nos lábios de
quem ainda não conhece a função salvífica da Cruz e dos gemidos que emanam do
alto da Cruz. Os martírios e os sofrimentos eram vistos pelos heróis da fé,
como uma ponte segura que os conduzia ao coração do Mártir por excelência, que
é Jesus Cristo, ou devemos negar que os sofrimentos de um Pe Pio de Pietrelcina
o configuram à Cristo? No entanto não há na biografia do santo ou no seu
epistolário, um relato em que o místico clamasse a Deus a cura dos seus
estigmas interiores, pois dos exteriores ele tinha vergonha.
Clamar por milagres é errado? Sim e não;
é errado quando não há tentativas de tomar a sua Cruz e seguir Jesus até o
calvário. E é certo clamar por milagres, quando este milagre clamado objetiva a
aquisição de forças para carregar a cruz com dignidade até o calvário, para
então participar da Glória da ressurreição. É certo clamar por milagres quando
não se esquece de abraçar a Cruz, pois na maioria das vezes, a Cruz é uma prova
de amizade de Jesus para nós; como se Ele dissesse: “quero que sejas como Eu!”.
“Se é assim que o Senhor trata seus
amigos, não é a toa que o Senhor tem poucos amigos” disse uma Santa.
Para o cristão, fugir da cruz não é uma
opção, porém aceita-la com amor é a oportunidade de sermos fiéis ao chamamento
de Cristo;” quem quiser vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua Cruz e
me siga.”.
Penso que nossos exemplos de como viver
a Cruz encontram-se na vida dos Santos, principalmente dos Santos Mártires,
pois olhando para eles e rogando-lhes a intercessão, reavivar-se-ia a
espiritualidade do martírio, esta, apagada há muito da piedade católica. Como
não ver algo de salvífico em santo Inácio de Antioquia, que afirmou que
atiçaria as feras caso elas se acovardassem em devorá-lo, no coliseu romano,
pois queria ele ser trigo puro de Cristo, moído nos dentes das feras? Como não
ver um sinal Eucarístico nos relato do martírio do Venerável Bispo de Esmirna,
São Policarpo, que quando queimado sobre uma pilha de lenha, relataram os
narradores de seu martírio que o fogo não o consumia, mas assava-o como pão
puro de Cristo? Ora devemos nos acautelar para que não nos tornemos inimigos da
Cruz de Cristo, pois tomando com amor as nossas cruzes, podemos dizer
juntamente com um Eucarístico São Paulo: “Já não sou eu quem vivo; é Cristo que
vive em mim!” Gl 2,20. O slogan “Pare de Sofrer” nunca foi tão irracional!
Encerro com as sapientíssimas e lúcidas palavras do santo
padre, Papa Francisco sobre a Cruz: “Este Evangelho continua com uma situação especial. O próprio
Pedro que confessou Jesus Cristo com estas palavras: Tu és Cristo, o Filho de
Deus vivo, diz-lhe: Eu sigo-Te, mas de Cruz não se fala. Isso não vem a
propósito. Sigo-Te com outras possibilidades, sem a Cruz. Quando caminhamos sem
a Cruz, edificamos sem a Cruz ou confessamos um Cristo sem Cruz, não somos
discípulos do Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas,
mas não discípulos do Senhor.
Eu queria que,
depois destes dias de graça, todos nós tivéssemos a coragem, sim a coragem, de
caminhar na presença do Senhor, com a Cruz do Senhor; de edificar a Igreja
sobre o sangue do Senhor, que é derramado na Cruz; e de confessar como nossa
única glória Cristo Crucificado. E assim a Igreja vai para diante.” Papa Francisco, homilia em Santa Missa
com os Cardeais .
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