Réginald Garrigou-Lagrange , O.P. |
Presença geral de Deus em todas as criaturas.
Deus está, em primeiro lugar, presente em todas as coisas como causa conservadora por um contato, não quantitativo mas virtual; semelhante, não ao contato de nossa mão e do papel onde ela escreve, mas ao contato da nossa vontade e da mão que ela move. É o contato dinâmico da Onipotência e o efeito imediato produzido por Ela. A conservação da criatura na existência é, de fato, a seqüência do ato criador. Ora, Deus criou sem intermediário, sem nenhum instrumento, a matéria, sujeito primeiro de toda mudança corpórea, e produziu igualmente ex nihilo, do nada, as almas espirituais e imortais e os espíritos puros finitos. Ele conserva, portanto, imediatamente, a matéria, as almas, os anjos; portanto, existe um contato dinâmico da Onipotência (que não é realmente distinta da natureza divina) com nosso ser natural. É a presença geral de Deus em todas as coisas, dita presença de imensidade, aquela de que fala São Paulo quando diz: O Deus que fez o mundo, sendo o Senhor do céu e da terra... não está distante de cada um de nós, pois é Nele que temos a vida, o movimento e o ser. (At 17, 28) Deus é como o lago donde emana a vida da criação; Ele é a força central que atrai tudo a ela, como o diz a liturgia: “Rerum Deus tenax vigor, immotus in te permanens”.
Presença especial de Deus nos justos segundo a Escritura.
A Santa Escritura não nos fala somente desta presença geral de Deus em todas as coisas, mas também duma presença especial de Deus nos justos. É dito no Antigo Testamento, no livro da Sabedoria I, 4: A sabedoria divina não entrará numa alma maligna, não habitará num corpo sujeito ao pecado. Seria somente a graça criada ou o dom criado da sabedoria, que viria habitar na alma do justo?
As palavras de Nosso Senhor nos trazem uma nova luz e nos mostram que são as próprias pessoas divinas que vêm habitar em nós: Se alguém me ama, diz, ele observará minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e faremos nele Nossa morada (Jo 14, 23). Ao mesmo tempo Nosso Senhor promete enviar-nos o Espírito Santo (Ibid., 26). Segundo estas palavras, quem virá? Seriam somente os efeitos criados, a graça santificante, a caridade espalhada nos nossos corações? Não. Estes que vêm são Aqueles que amam: Meu Pai e eu viremos a ele, e não duma maneira transitória, mas faremos nele Nossa morada. Rogarei a meu Pai e ele vos dará um outro consolador, para que habite em vós para sempre, o Espírito da verdade... que vos ensinará todas as coisas e vos lembrará tudo o que eu vos disse. (Ibid., 16-26) Estas palavras não são ditas somente aos apóstolos — eles verificaram-nas em si, no dia de Pentecostes, que é renovado em nós pela Confirmação.
Este testemunho do Salvador é claro, explicitando bastante o que diz o livro da Sabedoria. São realmente as três Pessoas Divinas que vêm habitar de maneira permanente nas almas justas.
Deste modo o compreenderam os apóstolos. São João escreve (1 Jo 4, 9-16): Deus é caridade... e aquele que está na caridade permanece em Deus, e Deus nele. Ele possui Deus em seu coração, mas, mais ainda, Deus o possui e o guarda nele, conservando, não somente a existência natural, mas a vida da graça e a caridade.
São Paulo diz o mesmo (Rm 5, 5). Enquanto a alma permanecer em estado de graça, enquanto conservar a caridade, ela será o templo do Espírito Santo.
Em várias ocasiões, São Paulo volta a esta doutrina consoladora: Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus em vós habita? (1 Cor 3, 16; 6, 19). Esta presença especial das três Pessoas Divinas é especialmente apropriada ao Espírito Santo, porque ela depende da caridade — a qual nos assimila a Ele mais que ao Pai e ao Filho, pois que Ele é o amor pessoal. Elas estão também em nós, segundo o testemunho de Jesus, mas nós não lhes seremos perfeitamente assimilados senão recebendo a luz da glória, que nos fará marcados pela semelhança do Verbo, que é o esplendor do Pai. De modo equivalente fala Leão XIII em sua encíclica sobre o Espírito Santo: “Divinum illud munus” de 9 de maio de 1897.
A Escritura ensina portanto mui explicitamente que as três Pessoas Divinas habitam em toda alma justa, em toda alma em estado de graça. A tradição, pela voz dos primeiros mártires, pela voz dos Padres, pelo ensino oficial da Igreja mostra, por outro lado, que é deste modo que é preciso compreender o que diz a Escritura.
Qual união resulta desta habitação?
Os teólogos comumente ensinam que esta união do justo às Pessoas Divinas difere imensamente da união hipostática da humanidade de Jesus ao Verbo; a coisa é manifesta, pois a união hipostática é a união da natureza divina e da natureza humana numa só e mesma pessoa, aquela do Verbo.
Ao contrário, o justo tem com Deus uma união não-substâncial, mas acidental e moral. Em outros termos, é uma união pelo conhecimento e o amor. Contudo, esta união é real, pois as Pessoas Divinas estão presentes no justo não só por um efeito de sua operação, como o sol está presente sobre a terra pela luz e pelo calor que lhe envia; as próprias Pessoas Divinas estão realmente e substancialmente presentes na alma justa (sem lhe estar substancialmente unida como o Verbo à humanidade de Jesus). Os teólogos normalmente dizem: “solus Deus illabitus animae”, Deus está realmente presente na alma justa, mais intima que ela mesma, como o princípio íntimo de sua vida interior.
Os teólogos também concordam geralmente em admitir que, como já dissemos, a habitação das três Pessoas Divinas é própria ao Espírito Santo, pois que depende da caridade, a qual nos assimila mais ao Espírito Santo, amor pessoal, do que a fé esclarecida pelos dons nos assimila ao Verbo e por Ele ao Pai. A perfeita assimilação ao Verbo e ao Pai far-se-á quando nós recebermos a luz da glória.
Enfim, geralmente se ensina que o Espírito Santo santifica a alma justa, não como causa formal, mas como causa eficiente e exemplar.
Eis porque não devemos dizer que o Espírito Santo é, propriamente falando, “a alma de nossa alma, a vida de nossa vida”, mas que é, por assim dizer, “como a alma de nossa alma, como a vida de nossa vida”. Ele não é, de fato, o constitutivo formal dela, mas, com o Pai e o Filho, é causa eficiente de nossa santificação, pois produz, conserva e aumenta em nós a graça santificante e a caridade. Além disso, é a causa exemplar dela, pois a caridade criada é uma similitude participada da caridade incriada. Também é o seu fim último atraindo a si soberanamente, está em nós, junto com o Pai e o Filho, como um objeto quase experimentalmente conhecível e às vezes efetivamente conhecido, e amado acima de tudo.
Quais são as conseqüências práticas da habitação da Santíssima Trindade em nós?
Uma vez que o Espírito Santo habita em nós e nos concede, com a caridade, os sete dons, que estão em nós como em um barco com velas dóceis à impulsão do vento favorável, devemos ter uma grande docilidade com relação ao Espírito Santo. Isto supõe primeiramente o silencio em nossa alma, para que as inspirações divinas, ainda latentes, não passem desapercebidas; é preciso silenciar as paixões mais ou menos desregradas, as de afeições naturais, da ambição; silencio que supõe a mortificação de tudo o que há em nós de desordenado.
A docilidade ao Espírito Santo supõe também o discernimento para distinguir as inspirações divinas daquelas que não são boas senão aparentemente. As que vêm do Espírito Santo nos lembram quase sempre um dever; em outras oportunidades, contêm um conselho manifestamente conforme a nossa vocação, e ai, então, é seguro que convém grandemente segui-los. E então as inspirações se tornam cada vez mais numerosas e prementes. Quem pode dizer o valor de uma só inspiração verdadeiramente conforme à nossa vocação? Não segui-la expõe-nos a vegetar durante anos, segui-la orienta-nos docilmente à santidade.
Praticamente, não se deve ir nem muito lentamente, por falta de generosidade, nem muito rápido, por presunção.
Muitos vão muito lentamente e tornam-se almas atrasadas; não são mais iniciantes, e tampouco progridem. Estas almas são, na vida espiritual, como crianças anormais que não cresceram, e que se tornam um tanto disformes, como anões.
Como uma alma torna-se atrasada? Isso ocorre-lhe sobretudo pela negligencia às pequenas coisas na pratica das virtudes e da piedade. Cessamos de ver o lado grandioso das pequenas coisas no serviço de Deus e nos dispomos assim a ver só os pequenos aspectos das grandes coisas, como a missa, a palavra de Deus, a teologia, o ministério apostólico; dispomo-nos a enxergar somente o que é exterior. A capacidade de julgamento decai com a vida. As pequenas coisas do serviço de Deus são pequenas em si mesmas, mas grandes pelo fim ao qual são ordenadas e pelo espírito de fé e de amor com o qual seria preciso cumprir-las; seriam então observadas espontaneamente, sem precisar refletir sobre elas, como o pianista que toca bem cada nota de seu piano. Estas pequenas coisas são a oração antes e depois do estudo, antes e depois das refeições, a prática atenta até aos detalhes das virtudes da humildade, da paciência, da doçura, da polidez. Em si é pouca coisa, como os cílios ou sobrancelhas de uma fisionomia humana, que, entretanto, sem eles estaria desfigurada. Como diz Santo Agostinho: “Minimum quidem minimum est, sed semper servare legem Dei etiam in minimis, hoc quidem maximum est”. Aquele que é fiel nas pequenas coisas dispõe-se a ser fiel nas grandes quando estas lhe são pedidas: Qui fidelis est in mínimo, et in majori fidelis est. (Lc 16, 10). Assim mantém-se uma união não só habitual, mas atual com Deus, duma maneira quase continua e, por aí, fiel à graça do momento presente e às inspirações que ela contém.
Uma alma torna-se atrasada também pela recusa dos sacrifícios exigidos para romper com uma afeição demasiado sensível, com o gosto de confortos, com uma certa tendência à vaidade, ou à dominação. Tornamo-nos atrasados recusando seguir a inspiração que nos levaria a ser mais esforçados, mais generosos no serviço de Deus, mais atentos às necessidades da alma do próximo. Então, a vida decai cada vez mais, e o julgamento com a vida, pois cada um julga segundo sua inclinação. É deste modo que até mesmo almas consagradas podem se transformar em almas atrasadas; e então os efeitos usuais da habitação da Santíssima Trindade nelas produzem-se cada vez menos.
É evidente que é preciso reagir, evitando a todo custo o defeito contrario que é o da precipitação, pois então a reação seria totalmente superficial e de curta duração. Evitemos a precipitação da criança que quer correr no começo de uma ascensão, e que, fatigada ao final de dois quilômetros, renuncia à escalada. É necessário, como dissemos, caminhar ao passo pequeno e resoluto do montanhês, que não se detém senão no cume.
Não se deve querer voar antes de ter asas, e não confundir o primeiro momento de entusiasmo com o firme propósito de avançar custe o que custar. Nem confundir a ordem da intenção, onde o fim entrevisto e desejado é o primeiro, com a ordem da execução, onde o fim só é obtido e conquistado em último lugar, depois de se ter empregado todos os meios, desde os menores até os mais elevados. Precisamos evitar o sentimentalismo que está na sensibilidade, a afetação de um amor que não se tem, ou não o bastante, na vontade. É preciso dar-se conta, com um realismo são, que existe desde há muito tempo, tempo demais, no fundo de nossa vontade, como diz Tauler, uma misteriosa luta, algumas vezes trágica, entre a caridade que tende a se enraizar e o egoísmo que tende a renascer sempre como erva-daninha.
Veremos então se realizar pouco a pouco as conseqüências normais da habitação da Santíssima Trindade em nós, aquelas notadas por Santo Tomás: (Suma Contra Gentios. 1, IV, c. 21 e 22). Receberemos graças sempre novas de luz, de atração, de amor, de generosidade, de força e de paciência; possuiremos cada vez mais a presença de Deus, entreter-nos-emos constantemente com Ele, como Santo Domingos que não sabia falar senão com Deus ou sobre Deus; encontraremos nesta conversação íntima a paz, às vezes o júbilo, com o desejo de uma conformidade cada vez maior com a vontade divina, e nesta conformidade desejada encontraremos a santa liberdade dos filhos de Deus, porque a vontade divina reinará cada vez mais na nossa vontade, na medida em que a caridade se enraizar mais profundamente nela. Compreenderemos, então, cada vez melhor, que nossa vontade é de uma profundidade sem medida, já que só Deus, visto face a face, pode saciá-la e atraí-la irresistivelmente.
Roma, Angélico.
(La Vie Spirituelle n° 288, junho de 1944. Tradução: PERMANÊNCIA)
Extraído de http://permanencia.org.br
PAX CHRISTI
Diogo Pitta
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