O conceito de "infância
espiritual" existe na Igreja desde o seu começo. Basta ir ao Evangelho e
notar que a condição que Jesus estabelece para que seus discípulos entrem no
Reino dos céus é que se transformem em criancinhas (cf. Mt 18, 3). Esta verdade
foi desenvolvida por muitos teólogos medievais, mas só atingiu seu cume em uma
jovem carmelita do século XIX, Teresa de Lisieux, também conhecida como Santa
Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face.
A "infância espiritual", este
tesouro da espiritualidade católica, é vivenciada por todos aqueles que buscam
a Deus e querem ser santos. A despeito das tendências jansenistas da França
oitocentista, Santa Teresinha tinha consciência daquilo os padres do Concílio
Vaticano II chamariam de "a vocação de todos à santidade na Igreja".
Nesta, diz a constituição Lumen Gentium, "todos (...), quer pertençam à
Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a
palavra do Apóstolo: 'esta é a vontade de Deus, a vossa santificação' (1 Ts 4,
3; cf. Ef 1, 4)".
Deus chama à santidade não somente as
grandes almas, mas também "une légion de petites âmes – uma legião de
almas pequeninas", escreve Santa Teresa, no manuscrito B
do livro "História de uma alma". Neste clássico da espiritualidade
cristã, ela traça os moldes de sua doutrina da "pequena via", através
de uma simples parábola:
"Como pode uma alma tão imperfeita
como a minha aspirar à plenitude do Amor?... Ó Jesus! meu primeiro, meu único
Amigo, Tu que amo UNICAMENTE, dize-me que mistério é esse. Por que não reservas
essas imensas aspirações para as grandes almas, para as águias que planam nas
alturas?... Considero-me apenas um mero passarinho coberto de leve penugem, não
sou uma águia, só tenho dela os olhos e o coração, pois apesar da minha extrema
pequenez ouso fixar o Sol Divino, o Sol do Amor, e meu coração sente em si
todas as aspirações da águia..."
Santa Teresinha contempla os grandes
santos – as águias – e vê a sua pequenez, comparando-se a "um mero
passarinho coberto de leve penugem". No entanto, ela percebe em si uma
contradição: não é uma águia, mas "sente em si todas as aspirações"
de uma águia; não é majestosa como ela, mas tem os seus olhos e o seu coração.
No dia 6 de agosto de 1897, em
confidência à sua irmã Inês, Teresa explicou "o que ela entendia por
'permanecer criancinha' perante o bom Deus":
"É reconhecer o seu nada, é esperar
tudo do bom Deus, assim como uma criança pequena espera tudo do pai;
é não se preocupar com nada e, de modo algum, fazer fortuna. Mesmo entre os
pobres, dá-se à criança o que lhe é necessário, mas assim que ela cresce o pai
não quer mais alimentá-la, dizendo-lhe: 'Agora vá trabalhar, você pode se
sustentar'."
"Foi para não escutar isso que eu
não quis crescer, sentindo-me incapaz de ganhar a vida, a vida eterna do Céu.
Permaneci, então, sempre pequena, tendo uma só ocupação: colher flores, as
flores do amor e do sacrifício, oferecendo-as ao bom Deus, para seu
agrado."
No crescimento espiritual, há uma lei
contrária à do crescimento físico. Naquele, deve prevalecer sempre o primado da
graça, pelo qual a pessoa se torna cada vez mais dependente de Deus. O santo,
quanto mais santo, mais depende d'Ele, mais reconhece sua dependência e sua
pequenez.
Porém, sabendo que "é necessário
entrarmos no Reino de Deus por meio de muitas tribulações" (At 14, 22),
este processo não se dá sem sofrimento. Para se chegar à plena "infância
espiritual", é preciso passar pela noite escura da alma, pela purificação.
Prossegue Santa Teresinha, no manuscrito B de seu livro:
"O passarinho quer voar para esse
Sol brilhante que encanta seus olhos, quer imitar as águias, suas irmãs, que vê
chegar ao lar divino da Trindade Santíssima... ai! o que pode fazer é bater as
asinhas, voar, porém, não está em seu pequeno alcance! O que será dele? Morrer
de tristeza por se ver tão impotente?... Oh não! o passarinho nem vai ficar
aflito. Com total abandono, quer ficar olhando seu divino Sol; nada poderá
assustá-lo, nem o vento nem a chuva, e se nuvens escuras vierem esconder o
Astro de Amor o passarinho não trocará de lugar. Sabe que, além das nuvens, seu Sol
continua brilhando, que seu brilho não cessará. Às vezes, o coração do
passarinho é vítima de tempestade, parece não acreditar que existem outras
coisas além das nuvens que o envolvem. Esse é o momento da
felicidade perfeita para o pobre serzinho frágil. Que felicidade ficar aí,
assim mesmo; fixar a luz invisível que escapa à sua fé!!!..."
Em certos momentos, o passarinho se
aflige e é tentado pela incerteza, pela dúvida: será que existe o Sol, além das
densas nuvens que pairam no ar? Será possível ver o amor de Deus nesta vida
crucificada e cheia de sofrimentos? A alma, então, se lança totalmente nos
braços de Deus, como uma criança inteiramente dependente de seus pais, e é-lhe
dada a certeza da fé. Ela diz: meu
Deus, eu não vos compreendo, mas eu vos amo.
A "infância espiritual" também
consiste em não dar demasiada importância aos próprios pecados. Ainda em
confidência à sua irmã, Teresinha revela:
"Ser criança é ainda não atribuir a
si própria as virtudes praticadas, acreditando-se capaz de alguma coisa; é
reconhecer que o bom Deus coloca este tesouro na mão de sua criancinha para que
ela se sirva dele quando precisar; mas é sempre o tesouro do bom Deus. Enfim, é
nunca desanimar por causa de seus erros, pois
as crianças caem com frequência, porém são pequenas demais para se machucar
muito."
A experiência de Santa Teresinha do
Menino Jesus convida os cristãos a se tornarem como crianças, pois "o
Reino dos céus é para aqueles que se lhes assemelham" (Mt 19, 14).
Fonte: padrepauloricardo.org
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