“O world, thou choosest not the better part!”
(George Santayana)
Língua, religião e alta cultura são os
únicos componentes de uma nação que podem sobreviver quando ela chega ao
término da sua duração histórica. São os valores universais, que, por servirem
a toda a humanidade e não somente ao povo em que se originaram, justificam que
ele seja lembrado e admirado por outros povos. A economia e as instituições são
apenas o suporte, local e temporário, de que a nação se utiliza para seguir
vivendo enquanto gera os símbolos nos quais sua imagem permanecerá quando ela
própria já não existir.
Mas, se esses elementos podem servir à
humanidade, é porque serviram eminentemente ao povo que os criou; e lhe
serviram porque não traduziam somente suas preferências e idiossincrasias, e
sim uma adaptação feliz à ordem do real. A essa adaptação chamamos “veracidade”
-- um valor supralocal e transportável por excelência. As criações de um povo
podem servir a outros povos porque elas trazem em si uma veracidade, uma
compreensão da realidade -- sobretudo da realidade humana --que vale para além
de toda condição histórica e étnica determinada.
Por isso esses elementos, os mais
distantes de todo interesse econômico, são as únicas garantias do êxito no
campo material e prático. Todo povo se esforça para dominar o ambiente
material. Se só alguns alcançam o sucesso, a diferença, como demonstrou Thomas
Sowell em Conquests and Cultures, reside principalmente no “capital
cultural”, na capacidade intelectual acumulada que a mera luta pela vida não
dá, que só se desenvolve na prática da língua, da religião e da alta cultura.
Nenhum povo ascendeu ao primado
econômico e político para somente depois se dedicar a interesses superiores. O
inverso é que é verdadeiro: a afirmação das capacidades nacionais naqueles três
domínios antecede as realizações político-econômicas.
A França foi o centro cultural da Europa
muito antes das pompas de Luís XIV. Os ingleses, antes de se apoderar dos sete
mares, foram os supremos fornecedores de santos e eruditos para a Igreja. A Alemanha
foi o foco irradiador da Reforma e em seguida o centro intelectual do mundo --
com Kant, Hegel e Schelling -- antes mesmo de constituir-se como nação. Os EUA
tinham três séculos de religião devota e de valiosa cultura literária e
filosófica antes de lançar-se à aventura industrial que os elevou ao cume da
prosperidade. Os escandinavos tiveram santos, filósofos e poetas antes do
carvão e do aço. O poder islâmico, então, foi de alto a baixo criatura da
religião -- religião que seria inconcebível se não tivesse encontrado, como
legado da tradição poética, a língua poderosa e sutil em que se registraram os
versículos do Corão. E não é nada alheio ao destino de espanhóis e portugueses,
rapidamente afastados do centro para a periferia da História, o fato de terem
alcançado o sucesso e a riqueza da noite para o dia, sem possuir uma força de
iniciativa intelectual equiparável ao poder material conquistado.
A experiência dos milênios, no entanto,
pode ser obscurecida até tornar-se invisível e inconcebível. Basta que um povo
de mentalidade estreita seja confirmado na sua ilusão materialista por uma
filosofia mesquinha que tudo explique pelas causas econômicas. Acreditando que
precisa resolver seus problemas materiais antes de cuidar do espírito, esse
povo permanecerá espiritualmente rasteiro e nunca se tornará inteligente o
bastante para acumular o capital cultural necessário à solução daqueles
problemas.
O pragmatismo grosso, a superficialidade
da experiência religiosa, o desprezo pelo conhecimento, a redução das
atividades do espírito ao mínimo necessário para a conquista do emprego
(inclusive universitário), a subordinação da inteligência aos interesses
partidários, tais são as causas estruturais e constantes do fracasso desse
povo. Todas as demais explicações alegadas -- a exploração estrangeira, a
composição racial da população, o latifúndio, a índole autoritária ou rebelde
dos brasileiros, os impostos ou a sonegação deles, a corrupção e mil e um erros
que as oposições imputam aos governos presentes e estes aos governos passados
-- são apenas subterfúgios com que uma intelectualidade provinciana e
acanalhada foge a um confronto com a sua própria parcela de culpa no estado de
coisas e evita dizer a um povo pueril a verdade que o tornaria adulto: que a
língua, a religião e a alta cultura vêm primeiro, a prosperidade depois.
As escolhas, dizia L. Szondi, fazem o
destino. Escolhendo o imediato e o material acima de tudo, o povo brasileiro
embotou sua inteligência, estreitou seu horizonte de consciência e condenou-se
à ruína perpétua.
O desespero e a frustração causados pela
longa sucessão de derrotas na luta contra males econômicos refratários a todo
tratamento chegaram, nos últimos anos, ao ponto de fusão em que a soma de
estímulos negativos produz, pavlovianamente, a inversão masoquista dos
reflexos: a indolência intelectual de que nos envergonhávamos foi assumida como
um mérito excelso, quase religioso, tradução do amor evangélico aos pobres no
quadro da luta de classes. Não podendo conquistar o sucesso, instituímos o
ufanismo do fracasso. Depois disso, que nos resta, senão abdicarmos de existir
como nação e nos conformarmos com a condição de entreposto da ONU?
Fonte: Olavo de Carvalho, O Globo, 27 de dezembro de 2003
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