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sábado, 12 de março de 2011

As Heresias e a Fé Cristã

«Augustine of Hippo Refuting Heretic»
(Illuminated manuscript, thirteenth century, from Morgan Library, New York, M. 92, ©Morgan Library)

Primeiras Dificuldades

esus Cristo não elaborou um discurso teológico, mas serviu-se de uma linguagem vitalmente religiosa. Sua pessoa e vida, suas palavras singelas e atitudes constituíram o centro de sua mensagem. Foi só após a ressurreição que os apóstolos passaram a anunciá-lo.
Paulo e João, os dois primeiros teólogos cristãos, apresentaram, de modo mais sistemático, o ensinamento sobre Deus e sobre Cristo.
João, já em seu tempo, deparou-se com os docetistas. Eles julgavam que Cristo tinha uma humanidade apenas aparente, que era Deus que nele se disfarçava, não tendo um corpo real. Contra eles, João afirma a humanidade real do Senhor: “Anunciamos o que nossas mãos têm apalpado” (cf. 1Jo 1,1-4).
Paulo, por sua vez, teve que enfrentar os judaizantes. Eles afirmavam ser necessário, para quem se tornava cristão, seguir as práticas morais judaicas e, portanto, tornar-se judeu antes de ser cristão. Paulo responderá defendendo a liberdade dos filhos de Deus frente à lei (cf. Rm 1,16-17).
«Carinus the Heretic Raises Notched Sword and Plunges Dagger into the Back of Peter Martyr» (Illuminated manuscript, thirteenth century, from Morgan Library, New York, M. 72, ©Morgan Library) «Ambrose of Milan Expelling Jews or Arians,» (Illuminated manuscript, fifteenth century, from Morgan Library, New York, M. 672-5, ©Morgan Library

Quem é o Deus de Jesus Cristo?

Através de suas palavras, Jesus testemunhou a verdade sobre Ele, o Pai e o Espírito Santo. No entanto, durante os séculos de perseguições, a Igreja não teve ocasião e nem condições de refletir sobre a verdade do Deus Trindade, que podemos assim sintetizar:
Um só Deus: Pai = Deus; Filho = Deus; Espírito Santo = Deus.
No século IV, com a liberdade religiosa, houve condições e necessidade de uma formulação teológica clara, sob pena de se destruir a alma da revelação cristã: o Deus Trindade.
Diante da imprecisa formulação teológica, apesar da boa vontade, vai-se caindo em algumas heresias. A heresia (= escolha) não sempre é um erro total, mas peca pela escolha de apenas uma parte da verdade. Por exemplo: afirmar que Cristo é Deus é verdade, mas é heresia dizer que é somente Deus e não Homem.

Heresias Trinitárias

Monarquianos: há uma hierarquia na Trindade, tendo o Pai mais completa substância divina e mais poder.
  1. Modalistas: o Filho é apenas um modo, uma forma diversa de aparição do Pai.
  2. Patripassianistas: foi o Pai, disfarçado em filho, que morreu na cruz.
  3. Dinamistas: O Filho não é uma encarnação divina, mas sim uma potência do Pai.
  4. Arianistas: Cristo não é nascido de Deus, mas é a primeira criatura que Deus fez do nada. A tal ponto Deus o uniu a si que o acolheu como Filho.
  5. Pneumatômacos: reconheciam a divindade do Filho, mas negavam a do Espírito Santo.
Diante destes problemas que atingiam a essência do Deus cristão, a Igreja serviu-se do trabalho teológico de grandes bispos, monges e teólogos. Com isso, a Igreja buscou afirmar, para todo o corpo eclesial, a mesma fé.
«A Jew and Five Christians Pray to God» (Woodcut, fifteenth century, The Illustrated Bartsch, vol. 84) «Gratian, Decretum: Causa 23, Heretics Suppressed,» (Illuminated manuscript, thirteenth century, from Stiftsbibliothek, Admont, lat.9)

Os Pais da Igreja

Os Pais da Igreja (Santos Padres), como os santos: Atanásio, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo, Cirilo de Alexandria e outros, colocaram-se na defesa intransigente da fé ortodoxa, defendendo a divindade do Filho e do Espírito Santo.
Seu trabalho e influência garantiram a unidade da Igreja. Para um assunto tão importante, a Igreja convocou grandes assembléias conciliares, os chamados Concílios Ecumênicos, aos quais participavam todos os bispos.

A Unidade Divina

Nicéia em 325
Em 325 foi convocado um Concílio Ecumênico na cidade de Nicéia. O imperador Constantino ofereceu o transporte e a hospedagem aos bispos, pois tinha grande interesse na unidade da Igreja que, para ele, significava a unidade do Império.
A maioria dos bispos veio do Oriente, o que vale para os quatro primeiros Concílios. Motivo: facilidade de participação e maior interesse teológico da parte oriental. O Papa enviava representantes.
Iluminado pelo Espírito e esclarecido pelos grandes Pais da Igreja, o Concílio definiu Jesus Cristo como verdadeiro Deus, da mesma substância (homoúsios) divina que o Pai.

Jesus: Deus e Homem

Constantinopla em 351
Outro Concílio, desta vez na cidade de Constantinopla, em 351, definiu o Espírito Santo Deus verdadeiro, da mesma substância divina do Pai, de quem procede.
A unidade divina estava assim definida: um Deus e três Pessoas divinas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Permanecia outro problema, cristológico: Jesus Cristo é Deus e é Homem. Como afirmar as duas naturezas sem enfraquecer a divindade ou a humanidade?
Sobre isso temos duas grandes heresias:
Nestorianismo: Jesus Cristo consta de duas pessoas: a segunda Pessoa divina e o Homem Jesus. Quebrando a unidade do Redentor, afirma que a união do Homem e do Filho é como a de dois pedaços de madeira amarrados: há apenas conjunção, não união. Deste modo, nega a encarnação do Filho, pois o Homem Jesus não é divino e, portanto, Maria não é Mãe de Deus, mas apenas do Homem Jesus.
Monofisimo: querendo afirmar a real união das duas naturezas em Jesus, a divina e a humana, conclui que a união é tão íntima que Jesus tem apenas uma natureza (= monofisis), a divina, que absorve a natureza humana.

A Unidade do Filho

Éfeso, em 431
Reunidos na cidade de Éfeso, em 431, os bispos condenaram o nestorianismo, afirmando que Jesus tem duas naturezas perfeitas, a divina e a humana, unidas numa única Pessoa divina e, portanto, Maria é verdadeiramente Mãe de Deus (Theotókos), pois não se podem separar em Jesus o divino e o humano (união hipostática).

Uma Pessoa e Duas Naturezas

Calcedônia, em 451
E em 451, o quarto grande Concílio Ecumênico de Calcedônia condenou o monofisismo. Devido à grande divisão no seio dos patriarcados (Roma contra Constantinopla, Antioquia e Alexandria contra Constantinopla) pelo entusiasmo teológico, foi determinante a carta escrita pelo papa Leão Magno ao patriarca de Constantinopla em 449.
A carta foi lida na assembléia conciliar e entusiasticamente aclamada (“Pedro falou pela boca de Leão”). Tendo sido aprovada, definiu que no Filho há uma só Pessoa (divina) e duas naturezas (divina e humana) perfeitas, sem mistura nem divisão.
Os quatro primeiros Concílios Ecumênicos são fundamentais para a fé cristã, pois, a partir deles, foi completado o Símbolo da Fé, o Credo niceno-constantinopolitano: o Deus de Jesus é a Trindade, e o Filho de Deus é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.

As Primeiras Divisões

Nem todos os bispos aceitaram a condenação do nestorianismo e, ao voltarem às suas ovelhas, formaram Igrejas fora da unidade. Isso aconteceu: na Índia, Pérsia e norte da Arábia.
Apesar da clareza doutrinal de Calcedônia, o monofisismo formou Igrejas separadas nos patriarcados de Alexandria, Antioquia, constituindo hoje Igrejas vivas e heróicas no Egito (os coptas), Etiópia e Síria.
Problema de linguagem
O diálogo teológico atual, ecumênico, revela que as controvérsias doutrinais foram muito mais um problema de linguagem que de conteúdo. Quando um grego e um romano falavam de pessoa, o alexandrino entendia natureza, e surgia a controvérsia. Prova disso é que a Igreja de Roma hoje mantém unidade doutrinal com os monofisitas, tendo Paulo VI e o patriarca copta do Egito recitando juntos o Credo. A fé é a mesma, a linguagem é que é problemática para expressar as verdades sobre Deus.
Componente política
Os patriarcados de Alexandria e Antioquia se sentiam oprimidos pela arrogância religiosa e política de Constantinopla. Para eles, pensar diferente era questão de dignidade e liberdade.
Os monges e o povo
Também não deve ser esquecida a participação dos monges e do povo nas controvérsias doutrinais e durante os Concílios. Formavam-se partidos, muitas vezes armados, na defesa da doutrina. São Cirilo chegava a fechar o porto de Alexandria para garantir a doutrina ortodoxa, impedindo assim as exportações de trigo para Constantinopla.
Diferentemente dos ocidentais, os orientais vibravam com as questões teológicas e, para defender a verdade, achavam válida uma boa briga.

Fonte: http://www.ecclesia.com.br

 Pe. José Artulino Besen*

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