Por Olavo de Cravalho
Publicado no Diário do Comércio.
Nada
que se diga sobre as relações entre política, ciência, moral e religião
tem aquele mínimo indispensável de dignidade intelectual requerido para
merecer alguma atenção, se não leva em conta o fato mais visível da
História terrestre: todas as guerras de religião desde o início dos
tempos, somadas, mataram muito menos gente do que as ideologias
científicas modernas, socialismo e nazismo, mataram em umas poucas
décadas. Aquele que, posando de defensor da espécie humana, toma a
palavra em nome da “ciência”, das luzes e da modernidade, já sobe ao
palanque trazendo na testa o emblema sinistro da mentira totalitária. E é
com perfeita hipocrisia, se não com inépcia autêntica, que semelhante
paspalho alega entre seus títulos de legitimidade a diferença entre a
“pseudociência” dos outros e a “sua” ciência supostamente genuína e
respeitável.
Pois essa diferença, desde logo, só existe e só aparece no
interior da prática científica mesma: os pseudocientistas só o são, no
julgamento alheio, porque antes disso são cientistas de profissão e não
outra coisa. Quem produz pseudociência é a classe científica e ninguém
mais, exatamente como os erros judiciários nascem das cabeças de juízes e
as heresias dos cérebros de religiosos, não de ateus ou de
indiferentes. A pureza da ciência, como a da justiça e a da religião, é
um ideal normativo e não um mérito real inerente a qualquer das três. O
cientista que chama alguém de pseudocientista acusa um colega de
profissão, e deve fazê-lo com a humildade de quem confessa os pecados da
sua própria classe, não com os ares beatíficos de quem, vindo de fora,
fala com a autoridade da completa inocência. Em segundo lugar, aquela
distinção não é um dado a priori e incontrovertido, não é uma
premissa autoprobante, mas o resultado de discussões que podem
prosseguir indefinidamente: as teorias racistas do nazismo tiveram
defensores entre os mais prestigiosos cientistas da época, e o marxismo
ainda os tem às pencas. E ambos esses grupos nunca cessaram de acusar um
ao outro de pseudociência.
Digo isso porque a antropóloga Débora Diniz, da UnB, entra no debate sobre o aborto falando em nome dos “cientistas sérios” (sic) e acredita piamente que pertence a essa classe (v. http://www.cebes.org.br/ verBlog.asp?idConteudo=4428& idSubCategoria=30).
Da
minha parte, não sou cientista, e só sou sério em casos de extrema
necessidade, que evito o quanto posso. Mas tenho a certeza de que não é
sério, nem científico, alguém se meter a filósofo sem o menor domínio
técnico da matéria e dizer uma coisa destas: “Nascituro é um não
nascido. A palavra parece ser um nó filosófico — como alguém pode
reclamar ser uma negação existencial? Essa é a confusão ética em curso
no Congresso Nacional com a proposta do Estatuto do Nascituro.”
Não,
dona. O nó filosófico só existe na sua cabeça. Nascituro não é alguém
que não nasceu, é alguém que foi gerado e já está em vias de nascer, o
que o diferencia radicalmente de todos os simplesmente não-nascidos. O
particípio futuro latino que a palavra traduz não tem nenhuma acepção de
“negação existencial”. Exatamente ao contrário: nascitur significa “começar a ser ou a existir”. Não vou lhe recomendar que tire a dúvida lendo Cícero porque seria uma crueldade.
No
entanto, se o tivesse lido a senhora não se submeteria ao vexame de
escrever esta lindeza: “O nascituro é criação religiosa para dar
personalidade jurídica às convicções morais de homens que acreditam
controlar a reprodução das mulheres pela lei penal.” Ora, dona, não foi
nenhum bispo nem pastor protestante que inventou o particípio futuro no
latim. O termo designa um estágio na formação natural do ser humano e
não uma noção religiosa qualquer, muito menos um dogma cristão. Mas como
esperar algum conhecimento de latim da parte de quem não domina sequer o
português? Não vou contestar a sua sentença, vou reescrevê-la para ver
se a senhora aprende alguma coisa: “O nascituro é criação religiosa para
dar personalidade jurídica às convicções morais de homens que acreditam
poder controlar, pela lei penal, a atividade reprodutiva das mulheres.”
Do modo como a senhora escreveu, parece que a lei penal reproduz as
mulheres ou que elas se reproduzem a si mesmas. Como foi que a senhora
obteve um diploma de ginásio?
Não
satisfeita com tão patente fiasco, prossegue a indigitada: “O nascituro
é um conjunto de células com potencialidade de desenvolver um ser
humano, se houver o nascimento com vida.” Entenderam? Se o bebê nasce
vivo, então e só então começará o processo que fará dele um ser humano. A
condição humana não é um dom natural, é uma criação cultural. O sujeito
em gestação é apenas um aglomerado de células, quando nasce ainda é
apenas isso, e só depois, pela educação recebida, se torna um ser
humano. Que o registro civil o inscreva logo de cara entre os seres
humanos é portanto, no mínimo, uma antecipação imprudente. Mutatis mutandis,
um leão recém-nascido, deixado a si mesmo e desprovido do treinamento
em atividades leoninas que ele receberá da sua mamãe, não é um leão de
maneira alguma, não é nem mesmo um leãozinho, é apenas um conjunto de
células que, beneficiado pelo Estatuto do Nascituro, não foi abortado em
tempo.
Mas
que outro raciocínio melhor poderia vir de alguém que chama de
“potencialidade” aquilo que acaba de rotular como “negação existencial”,
confundindo potência com privação de existência, e ainda tem a
presunção de desfazer “confusões éticas” no cérebro alheio?
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