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quarta-feira, 19 de junho de 2013

INDOLÊNCIA SELVAGEM EM MARCHA PARA O REINO DO NADA




“A ânsia de autoglorificar-se, de se agitar, é típica de todos os ilegítimos”.
Jacob Burckhardt


Sidney Silveira

Qualquer fabricação de heróis políticos é um fenômeno de ordem estética e de autoglorificação moral, a um só tempo. Primeiro embelezam-se artificiosamente os ideais — porque ninguém há de seguir o que é, por si, repugnante —, e depois se arregimentam pessoas cuja credulidade na própria capacidade de mudar os rumos da história revela, para os espíritos mais atentos, uma nota distintiva da vaidade: enxergar-se como protagonista, como alguém que se distingue dos demais pela ação política, mesmo não sabendo sequer definir “o que é” a política. A propósito, as grandes demagogias da história sempre se valeram do fascínio carismático que os ideais fabricados têm sobre os idiotas, aqui tomados como pessoas espiritualmente indolentes que precisam de guias para deliberar acerca de suas decisões mais importantes. A estes Aristóteles chamava de “escravos”, no tocante ao estado da psique.

A diferença com relação ao passado é que hoje as demagogias políticas não mais precisam dos grandes demagogos. Estes se tornaram desnecessários, pois as sociedades já se idiotizaram ao ponto de dar novas cores a uma conhecida frase de Nietzsche: o fanatismo é a única forma de vontade que pode ser incutida nos fracos. Ora, o neofanático político é justamente o sujeito tíbio cujo cérebro foi programado para dizer “amém” a um conjunto de falsos princípios libertários, sob a bandeira da democracia, palavra mágica capaz de significar tudo e nada ao mesmo tempo, mas que habitualmente serve para ele convencer-se de que a sua opinião, reproduzida em larga escala, é um deus habitante no hiperurânio das formas arquetípicas, e possui direitos inalienáveis. Isto ocorre quando o neofanático político — por meio de uma infernal alquimia semântica — transforma arremedos de idéias em “ideais”, com o auxílio indispensável das técnicas de engenharia social que delimitaram o seu “status mentis”.

Hitler escrevera a certa altura de seu “Mein Kampf” que não se deve incutir nas massas mais de um inimigo por vez — sobretudo no começo, quando se trabalha para forjar a nova massa de revoltosos. Ensinava o catecismo do líder nazista, em tom professoral: é preciso canalizar a insatisfação coletiva a partir de um slogan comum, para não dispersar as mentes. Essa velha lição da demagogia universal, adaptada de encomenda para a era das multidões, foi seguida à risca pelos responsáveis das passeatas que tomaram as ruas das capitais brasileiras nos últimos dez dias, em meio às quais foram vistas cenas de terrorismo típicas dos mais ferozes movimentos revolucionários. O pólo arregimentador da aglomeração heterogênea de almas insatisfeitas, no princípio, foi um só, exatamente como na pedagogia de “Mein Kampf”: o aumento de R$ 0,20 nas tarifas dos ônibus! Que depois outras bandeiras se desfraldassem a partir desta — em si mesma desproporcional em relação ao tamanho do barulho que os profissionais do protesto, remunerados há tempos pelo próprio governo, via Lei Rouanet, programavam fazer —, era algo não apenas natural, como previsível e obviamente desejado pelos comandantes da coisa.

Hordas de pessoas vaidosamente convencidas de sua própria boa-fé política juntaram-se em clima de festividade cidadã, com carinhas pintadas e roupas de cores combinadas, para protestar com cânticos cívicos entoados como se fossem arcanos das mais elevadas verdades eternas, em nome da tal democracia. O frenesi dessas criaturas, em geral despreparadas para objeções de qualquer natureza ao seu movimento, era patente — análogo ao êxtase psicofísico de um gozo erótico. É o que normalmente faz a propaganda política, quando se transforma numa tortuosa espécie de ato de fé: vira o molde a partir do qual se produz o sugestionamento coletivo que induz as pessoas a não divisarem bem as diferenças entre a imaginação e a realidade. Elas passam a ser narcoticamente arrebanhadas por mantras, mas sem perder a sensação da livre escolha.

Ao ver essas massas compactas de gente — em sua imensa maioria, abaixo dos 30 anos — a bradar com notável ímpeto, não pude deixar de pensar em duas coisas: primeira, há um egocentrismo teatral em toda multidão com intenções políticas; segunda, como dizia o velho Aristóteles, o lugar dos jovens jamais pode ser a política, porque o exercício virtuoso desta pressupõe o conhecimento arquitetônico dos meios que se devem ordenar em vista do bem comum, e a juventude é a época dos arroubos, dos experimentalismos existenciais, das paixões mais violentas, dos idealismos ardorosos que não se deixam vencer por argumentos. Em verdade, não os suportam, sobretudo quando os jovens têm a cabeça feita por teorias de matiz revolucionário.

O gigante brasileiro não está apenas adormecido, mas em hibernação perene. E hoje mais do que nunca, pois a agitação estampada nas manchetes dos últimos dias é apenas mais uma forma de manter as coisas exatamente como estão: distantes dos valores civilizacionais. Na melhor das hipóteses, na prática poderemos trocar seis por meia dúzia.

Por fim, não é ocioso salientar o seguinte: se a indolência espiritual é a pior selvageria que um homem pode fazer contra si mesmo, podemos dizer que, ao tornar-se torna coletiva, ela impede formalmente os verdadeiros bens políticos, sem os quais não se espere a paz social, mas o crescimento geométrico do caos.

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