Cultura não é
só aquisição de conhecimento, é a formação de uma personalidade ao mesmo tempo
arraigada na realidade histórico-social concreta e capaz de transcendê-la
intelectualmente.
Publicado no Diário
do Comércio.
Em artigo escrito já há algum tempo (http://siterg.terra.com.br/post/2014/03/18/procura-se-uma-nova-classe-alta-por-nizan-guanaes/),
o publicitário Nizan Guanaes observa que às nossas classes altas falta,
sobretudo, cultura. Pura verdade, mas por que somente às classes altas? Ao
longo da quase totalidade da história humana, o conjunto dos homens mais cultos
e sábios raramente coincidiu com o dos mais ricos e socialmente brilhantes.
“Livros e dinheiro são uma mistura perfeita para elegância, savoir faire
e bom gosto”, diz Guanaes. É certo. Mas também é certo que elegância, savoir
faire e bom gosto não são propriamente a alta cultura: são a vestimenta
mundanizada que ela assume quando desce do círculo das inteligências possantes
e criadoras para o âmbito mais vasto dos consumidores abonados, da sociedade
chique. São cultura de segunda mão.
O que falta no
Brasil não são apenas ricos educados. O que falta são intelectuais capazes de
educá-los. Um indício claro, entre inumeráveis outros, é que nenhuma
universidade brasileira, estatal ou privada, foi jamais incluída na lista de
cem melhores universidades mundiais do Times de Londres (Times Higher
Education World Ranking, http://www. timeshighereducation.co.uk/ news/the-100-most- international-universities-in- the-world-2015/2018125.article ).
Não há nessa exclusão nenhuma injustiça. Rogério Cezar de Cerqueira Leite
explicou o porquê em http://www1.folha.uol.com.br/ fsp/opiniao/202892-producao- cientifica-e-lixo-academico- no-brasil.shtml.
Foi talvez sentindo
obscuramente a gravidade desse estado de coisas que o próprio Guanaes mandou
seu filho estudar na Phillips Exeter Academy, de New Hampshire, tida como a
melhor escola preparatória americana, na esperança de colocá-lo depois em
alguma universidade da Ivy League, como Harvard, Yale, ou Columbia.
Sem deixar de
cumprimentar o publicitário pelo seu zelo paterno, observo que suas próprias
ações provam antes o meu diagnóstico da situação do que o dele: se cultura
faltasse somente aos homens ricos, bastaria enviar seus filhos a alguma
universidade local ou fazê-los conviver com intelectuais de peso em São Paulo
ou no Rio, e decorrida uma geração o problema estaria resolvido. Mas aí é que
está: faltam universidades que prestem e os grandes intelectuais morreram
todos, sendo substituídos por duas gerações de tagarelas incompetentes, cabos
eleitorais e cultores da própria genitália, como documentei abundantemente em O
Imbecil Coletivo (1996) e O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser
Um Idiota (2014), além de centenas de artigos, muitos deles neste mesmo Diário
do Comércio.
Ricos e até
governantes incultos não são, por si, nenhuma tragédia, desde que haja em torno
uma classe intelectual séria, capaz de lhes impor certos padrões de julgamento
que eles não precisam compreender muito bem, só respeitar. Foi assim na Europa
ao longo de toda a Idade Média e até épocas já bem avançadas dentro da
modernidade, quando a casta nobre considerava que a única ocupação digna da sua
posição social era a guerra, deixando os estudos para os padres e demais
interessados. O Imperador Carlos Magno só começou a aprender a ler – de má
vontade – depois dos trinta anos. Afonso de Albuquerque, sete séculos depois,
ainda considerava que saber línguas estrangeiras era coisa para subalternos. A
alta cultura não era sinal de posição social elevada, era um ofício
especializado. Daí a palavra clerc, “clérigo”, que não designava só os
sacerdotes, mas, de modo geral, toda pessoa letrada.
Complementarmente,
os homens de estudos eram o que podia haver de mais diferente do grand monde,
dos ricos e elegantes. Até bem recentemente, mesmo nos EUA, os intelectuais,
sobretudo universitários, primavam por uma vida austera, sem divertimentos nem
confortos, a não ser que, por coincidência, viessem eles próprios de alguma
família rica.
Tudo mudou nos anos
80, com o advento dos yuppies. Um yuppie é um jovem com diploma
de universidade prestigiosa, um emprego regiamente pago em alguma cidade
grande, um círculo de amigos importantes que se reúnem em clubes chiquérrimos e
uma cabeça repleta de regras de polidez politicamente corretas, um conjunto
formidável de não-me-toques que facilitam a aceitação social na mesma medida em
que dificultam o pensamento. Foi aí que formação cultural começou a significar
elegância, bom gosto e refinamento em vez de conhecimento e seriedade
intelectual.
Esse foi um dos
danos maiores produzidos pela desastrosa administração Jimmy Carter. Até os
anos 70 os EUA ainda tinham a melhor educação do mundo, toda ela fruto da
iniciativa autônoma da sociedade. A intervenção estatal, associada ao império
do esquerdismo chique e ao açambarcamento de toda atividade cultural pela
burocracia universitária, iniciou o processo de degradação intelectual
documentado por Russell Jacoby em The Last Intellectuals: American Culture in
the Age of Academe e por Allan Bloom em The Closing of the American Mind,
ambos de 1987.
No Brasil, a palavra
“Harvard” ainda pode significar altíssima cultura, mas nos EUA ela evoca antes
a pessoa de Barack Hussein Obama, que chegou a diretor da Harvard Law Review
sem ter ultrapassado o nível das redações ginasianas e depois fez fama de autor
com dois livros escritos inteiramente por Bill Ayers, um terrorista doublé
de talentoso artista da
palavra.
Nada mais expressivo
do vazio intelectual de Harvard do que o sucesso de John Rawls, o qual, segundo
a boutade de Eric Voegelin, escreveu uma Teoria da Justiça sem
notar que se tratava de uma teoria da injustiça.
O que hoje resta da
antiga pujança intelectual americana refugia-se em grupos autônomos, como o
círculo de discípulos do próprio Eric Voegelin, as redações de New Criterion
e Commentary, meia dúzia de editoras high brow ou o time seleto
de scholars que compõem a equipe de Academic Questions, uma
revista acadêmica dedicada ao estudo... da decadência acadêmica.
Em comparação com o
que temos no Brasil, é muito, é uma abundância invejável, mas, para o antigo
padrão americano, é quase miséria. Os EUA só continuam sendo o paraíso dos
estudos superiores no sentido yuppie do termo. Não por coincidência,
Guanaes cita como protótipo de pessoa culta a riquíssima, chiquíssima e
politicamente corretíssima Ariana Huffington, fundadora do Huffington Post,
um front de antijornalismo obamista empenhado em manter acesa a chama do “Yes
We Can” contra todos os fatos, contra toda evidência e contra todo o descrédito
geral.
Não quero me meter
na vida da família Guanaes, mas mandar um filho estudar nos EUA – digo nas
grandes universidades, e não nos círculos dos happy few -- é um meio de
defendê-lo contra a debacle cultural brasileira? Sim, se o que você quer para
ele é uma carreira de yuppie e uma alta cultura constituída de
“elegância, savoir faire e bom gosto”. Não, se você quer fazer dele um
estudioso sério, capaz de compreender o Brasil e ajudar o país a sair do
atoleiro.
Digo isso, também,
por outro motivo. Cultura não é só aquisição de conhecimento, é a formação de
uma personalidade ao mesmo tempo arraigada na realidade histórico-social
concreta e capaz de transcendê-la intelectualmente. Essa formação só é possível
se ela começa pela absorção da cultura local na língua local e se prossegue
nesse caminho até abarcar essa cultura como um todo e, então sim, tiver
necessidade de ampliar o seu horizonte pelo contato mais aprofundado com outras
culturas. Se um jovem ignorante da sua cultura nacional é transplantado para o
ambiente acadêmico de outro país, é melhor que ele fique por lá mesmo, pois, se
voltar, dificilmente chegará a compreender o lugar de onde saiu. O Brasil está
repleto de diplomados de universidades estrangeiras, cujos palpites sobre a
situação nacional superlotam as colunas de jornais com amostras de
incompreensão que raiam a alienação psicótica. O projeto “Ciência Sem
Fronteiras” está se encarregando de produzir mais alguns com dinheiro público.
Pode-se retrucar
que, nas presentes condições, a aquisição da cultura brasileira se tornou
inviável porque o jovem interessado não encontra guiamento nem na universidade,
nem fora dela. Não tenho resposta pronta para isso, mas desde quando a
dificuldade de resolver um problema torna desnecessário resolvê-lo?
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