A “família
tradicional” que os cristãos e conservadores defendem ardorosamente contra o
assédio feminista, gayzista, pansexualista etc., bem como contra a usurpação do
pátrio poder pelo Estado, é essencialmente a família nuclear constituída de
pai, mãe e filhos (poucos). O cinema consagrou essa imagem como símbolo vivente
dos valores fundamentais da cultura americana, e a transmitiu a todos os países
da órbita cultural dos EUA.
Mas
esse modelo de família nada tem de tradicional. É um subproduto da Revolução
Industrial e da Revolução Francesa. A primeira desmantelou as culturas
regionais e as unidades de trabalho familiar em que habilidades agrícolas ou
artesanais se transmitiam de pai a filho ao longo das gerações; as famílias
tradicionais desmembraram-se em pequenas unidades desarraigadas, que vieram
para as cidades em busca de emprego. A Revolução Francesa completou o serviço,
abolindo os laços tradicionais de lealdade territorial, familiar, pessoal e
grupal e instaurando em lugar deles um novo sistema de liames legais e
burocráticos em que a obrigação de cada indivíduo vai para o Estado em primeiro
lugar e só secundariamente – por permissão do Estado – a seus familiares e
amigos. A sociedade “natural”, formada ao longo dos séculos sem nenhum
planejamento, por experiência e erro, foi enfim substituída pela sociedade
planejada, racional-burocrática, em que os átomos humanos, amputados de
qualquer ligação profunda de ordem pessoal e orgânica, só têm uns com os outros
relações mecânicas fundadas nos regulamentos do Estado ou afinidades de
superfície nascidas de encontros casuais nos ambientes de trabalho e lazer. Tal
é a base e origem da moderna família nuclear.
Max Weber descreve esse processo como um
capítulo essencial do “desencantamento do mundo”, em que a perda de um sentido
maior da existência é mal compensada por sucedâneos ideológicos, pela indústria
das diversões públicas e por uma “religião” cada vez mais despojada da sua
função essencial de moldar a cultura como um todo. Nessas condições, assinala
Weber, é natural que a busca de uma ligação com o sentido profundo da
existência reflua para a intimidade de ambientes cada vez mais restritos, entre
os quais, evidentemente, a família nuclear. Mas, na medida mesma em que esta é
uma entidade jurídica altamente regulamentada e cada vez mais exposta às
intrusões da autoridade estatal, ela deixa de ser aos poucos o abrigo ideal da
intimidade e é substituída, nessa função, pelas relações extramatrimoniais.
Separada
da proteção patriarcal, solta no espaço, dependente inteiramente da burocracia
estatal que a esmaga, a família nuclear moderna é por sua estrutura
mesma uma entidade muito frágil, incapaz de resistir ao impacto das
mudanças sociais aceleradas e a cada “crise de gerações” que as acompanha
necessariamente. Longe de ser a morada dos valores tradicionais, ela é uma
etapa de um processo histórico-social abrangente que vai em direção à total
erradicação da autoridade familiar e à sua substituição pelo poder impessoal da
burocracia.
Não
por coincidência, o esfarelamento da sociedade em unidades familiares pequenas
permanentemente ameaçadas de autodestruição veio acompanhada do fortalecimento
inaudito de umas poucas famílias patriarcais, justamente aquelas que estavam e
estão na liderança do mesmo processo. Refiro-me às dinastias nobiliárquicas e
financeiras que hoje constituem o núcleo da elite globalista. Quanto mais uma
“ciência social” subsidiada por essas grandes fortunas persuade a população de
que a dissolução do patriarcalismo foi um grande progresso da liberdade e dos
direitos humanos, mais fortemente a elite mandante se apega à continuidade
patriarcalista que garante a perpetuação e ampliação do seu poder ao longo das
gerações. Com toda a evidência, a família patriarcal é uma fonte de poder: a
história social dos dois últimos séculos é a da transformação do poder
patriarcal num privilégio dos muito ricos, negado simultaneamente a milhões de
bocós cujos filhos aprendem, na universidade, a festejar o fim do patriarcado
como o advento de uma era de liberdade quase paradisíaca. O desenvolvimento
inevitável desse processo é a destruição – ou autodestruição -- das próprias
famílias nucleares, ou do que delas reste após cada nova “crise de gerações”.
A
“defesa da família” torna-se, nesse contexto, a defesa de uma entidade abstrata
cujo correspondente no mundo concreto só veio à existência com a finalidade de
extinguir-se. A ameaça feminista, gayzista ou pansexualista existe, mas só se
torna temível graças à fragilidade intrínseca da entidade contra a qual se
volta.
Ou
as famílias se agrupam em unidades maiores fundadas em laços pessoais profundos
e duradouros, ou sua erradicação é apenas questão de tempo. As comunidades
religiosas funcionam às vezes como abrigos temporários onde as famílias
encontram proteção e solidariedade. Mas essas comunidades baseiam-se numa
uniformidade moral estrita, que exclui os divergentes, motivo pelo qual se
tornam vítimas fáceis da drenagem de fiéis pela “crise de gerações”. A família
patriarcal não é uma unidade ético-dogmática: é uma unidade biológica e
funcional forjada em torno de interesses objetivos permanentes, onde os maus e
desajustados sempre acabam sendo aproveitados em alguma função útil ao conjunto.
Em
últimas contas, se o patriarcalismo fosse coisa ruim os ricos não o guardariam
ciumentamente para si mesmos, mas o distribuiriam aos pobres, preferindo, por
seu lado, esfarelar-se em pequenas famílias nucleares. Se fazem precisamente o
oposto, é porque sabem o que estão fazendo.
Diário do Comércio, primeiro de outubro de 2012
- Olavo de Carvalho
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