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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A carta de Caminha e a piedade dos índios





Ao menos isso não nos sonegaram os professores de história do Brasil: que esta nação teve como pedra fundamental: a Santa Missa e que com isso tornou-se a terra recentemente descoberta, Terra de Santa Cruz, o que decerto põe-nos sob uma alta vocação; a vocação à Santidade!

Porém, poucos nos é relatado sobre os ocorridos e pormenores deste ato que fincou no âmago do Brasil a vocação à perfeição cristã. 

A literatura Brasileira, segundo nos diz Massaud Moisés em sua obra “Literatura Brasileira através dos textos”,  inicia-se com a Carta de Pero Vaz de Caminha à D. Manuel, então Rei de Portugal, sobre o “achamento” do Brasil, onde relata absolutamente tudo o que foi visto, em detalhes que vão desde a minuciosa descrição corporal dos habitantes desta terra, até detalhes geológicos sobre o solo em que pisavam. 

Nesta carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Cabral, são relatados dois acontecimentos, que quando interligados dizem-nos muitíssimo á respeito da Fé e seu anúncio adaptado à cada tempo.

Numa narração, contemplamos pela pena de Caminha, o encontro do Capitão de uma das caravelas com os índios:

“O Capitão, quando eles vieram, estava sentado numa cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa (tapete*) por estrado. (...) Ascenderam-se as tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao capitão nem a ninguém. Porém, um deles pôs o olho no colar do capitão, e começou a acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para o castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata. Mostraram-lhe um papagaio pardo que o capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão e depois a tomaram como que espantados.”(1)

Nesta narrativa, percebemos que os nativos desta terra eram de certa forma habituados com a beleza; sabiam de fato reconhecer e tomar por importante tudo o que aos seus olhos era a representação da Beleza, mesmo que não soubessem conceitua-la; aconteceu isso com o Colar de ouro do Capitão e com o castiçal de Prata, itens que certamente deviam brilhar aos seus olhos da mesma forma que brilhavam aos olhos dos portugueses, o que me leva crer que a alma humana é dotada de certa capacidade de reconhecer  aspectos, símbolos e reflexos da Beleza. Não vemos, entretanto,  a mesma atitude diante da imagem dos nativos ao serem postos diante do carneiro e  da galinha, animais estes que não despertam a sensibilidade dos nativos. Deduz-se portanto, que os índios sabiam reconhecer o Belo.

Num outro trecho da carta, a pena de caminha perpassa pelo momento em que deu-se o Santo Sacrifício da Missa, e numa narrativa deliciosa para quem tem a Fé, conta-nos a postura dos índios diante da Santa Missa:

“E hoje, que é sexta-feira, primeiro de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor Chantar a Cruz, para ser melhor vista. Ali assinalou o capitão o lugar, onde fizessem a cova para chantar. 

Enquanto ficavam fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante, cantando, em maneira de procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinquenta ou mais (índios*).

Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram o altar ao pé dela. Ali disse a Missa o Padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinquenta ou setenta deles, assentados todos de joelhos assim como nós. 

E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus (Momento da Elevação da Hóstia Consagrada, que já é o Cristo.*), que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.

Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o capitão com alguns de nós outros.

Alguns deles, por o Sol ser grande, quando nós estávamos comungando, levantaram-se e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim ajuntava estes, que ali ficaram e chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o Altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.”(1)

É belíssimo percebermos a importância dos gestos diante dos mistério que se desenrola no Altar durante a Santa Missa! Os gesto externos são nada mais nada menos do que a manifestação exterior de uma disposição interior; representam o grau de reverência e abertura da alma à beleza do sagrado, e isto é percebido pelos índios, segunda a pena de Caminha. 

Os portugueses com seus gestos de piedade eucarística tornam-se sinais; placas luminosas que apontam na direção da reverência interior, incitando os nativos a iniciarem sua caminhada por tão excelsa estrada. 

Dissemos anteriormente, que os nativos, ao que tudo leva a crer, sabiam reconhecer e captar aspectos, sinais e reflexos do Belo: aqui temos a confirmação! Vemos também que eles poderiam ter  rechaçado ou apresentado sinais de repúdio e medo diante do rito que se seguia, assim como o fizeram com a galinha e com o carneiro na narração anterior, mas assim não o fizeram. 

O que vimos, foi o total entendimento do sentido e da finalidade da Santa Missa; foi a total aceitação do Sagrado, do Belo e do Excelso quando ao final da Santa Missa, um deles aponta para o altar e depois para o Céu como quem diz: “isto aqui, nos leva para ali!”

Me diz que não foi o indiozinho mais eficiente que muito padre ou catequista...


 Referências

1- Carta de Pero Vaz de Caminha, com um estudo de Jaime Cortesão, Rio de Janeiro, livros de portugal (1943), pp 205-207,  235-237, 238, 239-240

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