Carlos Andreazza
Publicado:
11/02/14 - 0h00
Neste país, decerto como consequência do bem-sucedido projeto brasileiro
de deseducação, só se pensa e age em manada, em bando, em patrulha, de modo que
não há jeito — a menor chance — de se reconhecer e valorizar, por exemplo, um
mérito pontual do regime militar de 1964 sem ser logo chamado de ditador,
quando não de torturador.
Trinta anos passados, três décadas de proscrição, de degredo, de
petrificação dos malditos, tempo em que o simples referir-se aos militares —
que não nos piores termos — significou adesão imediata e incondicional ao que
ocorria nos porões. Reconhecer a importância da infraestrutura — a única que
temos ainda hoje, diga-se — erigida naquele período? Ora, experimente...
Comente, com base nos fatos, que o Brasil depende hoje de obras públicas — de
portos, de estradas etc. — construídas pelo regime militar e torne-se de súbito
partidário e defensor, signatário do AI-5; um golpista!
Se é que a teve um dia, este país terá de todo perdido a mão para o que
seja reflexão, equilíbrio e ponderação; mas não sem estender a outra, ato
contínuo, ao ridículo.
Ah, o ridículo!
Afinal, bicheiros, traficantes, mensaleiros, milicianos e assassinos de
mais de 50 mil brasileiros por ano — tudo isso é passado, vencido, superado,
miragens que só possuem materialidade na percepção histérica da classe média
manipulada, claro, pela mídia golpista. O perigo — apontam os diligentes
revisores do Ministério Público — está nos monumentos, nas placas das ruas,
avenidas e estradas, nas fachadas de escolas do interior, em qualquer poste que
leve o nome de um militar de 1964, de um ditador daquele período proibido.
Mas, atenção!, só daquele — apenas daquele intervalo desgraçado entre
1964 e 1985. No Brasil, também se é seletivo com tiranos. Porque há, tão fofos,
os nossos ditadores de estimação. (E não falo nem do amor pátrio por assassinos
estrangeiros — e em atividade — como Fidel Castro). Ou não teremos aí o nosso
querido Getúlio Vargas, brasileiríssimo, o “pai dos pobres”, homem cruel, vil,
perseguidor, golpista, torturador, no entanto a nomear de goleiro a fundação,
passando por uma das mais importantes vias urbanas do país?
Eis que, então, aos 50 anos redondos do golpe militar somam-se os 40 de
uma das obras públicas mais importantes não só daquele período como, sem
dúvida, da história do país. Palco perfeito — cenário iluminado, holofotes
todos direcionados — para os justiceiros que não perdem oportunidade de
aparecer. E como são bons, generosos na construção do passado que melhor lhes
convém.
Ponte Presidente Costa e Silva? Não! Nem pensar! Não se pode deixar uma
placa velha, escondida, enferrujada e ignorada sob uma fundação carcomida
qualquer — que efeito, que impacto negativo terá sobre as crianças, sobre as
novas gerações? (Decerto muito pior que o do crack, cujo consumo por menores,
como sabido, já foi perfeitamente controlado). Não pode. Não mesmo. Um absurdo!
Uma afronta! Tem de mudar. Alude ao golpe, afinal, ao arbítrio, à tortura;
perpetua um passado que se quer apagar, que se fez interdito, e de que não se
pode tratar senão com o implacável esfregão seletivo.
A esses revisores da história — tapados pela mistificação, obstruídos
pela doutrina do justiçamento da memória, cegos aos fatos — não ocorre examinar,
portanto, que sem este homem, sem Artur da Costa e Silva, não haveria a ponte,
tão simples quanto isso, não como a conhecemos hoje, e que ali, pois, não se
homenageia a ditadura, o arbítrio, a tortura, mas um indivíduo que, apesar de
muitos e tantos erros, acertou, não fossem várias as vezes, ao menos uma.
Acertou em bancar, em viabilizar, em sustentar a construção de uma obra
que, embora sonhada e ansiada por mais de século, imperador, ditador ou
democrata nenhum antes lograra encarar — obra que se tornaria elemento decisivo
à integração física não só do Rio, mas do Brasil, marco incontornável da
engenharia nacional; obra que ele próprio não veria pronta, morto bem antes;
obra, a Ponte Rio-Niterói, que sequer é conhecida pelo nome oficial, mas que o homenageia
porque simplesmente não poderia ser de outra maneira.
Celebremos e fortaleçamos a democracia, mas sem jamais nos esquecermos
de que o autoritarismo não é exclusividade das ditaduras. E que, portanto, ao
apoiar este processo de apagamento seletivo da história, de aniquilamento dos
bons feitos alheios, os fernandohenriques da vida não se pensem livres do mesmo
destino. Também é questão de tempo.
http://oglobo.globo.com/opiniao/ponte-democrata-carlos-marighella-11565324
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